Reflexões de um velho ranzinza – A coerção tecnológica nossa de cada dia



Com 61 anos, e aguardando a aposentadoria, a vida não tem sido fácil. 

Mas às vezes a gente tenta relaxar. Tipo, uma vez por mês, na época do salário, ir tomar uma cerva. 

Como hoje. Sexta-feira, fim de tarde, mesa na calçada neste bar no centro. 

Encontro um sobrinho (sobrinho emprestado, mas nos damos bem). Vi o guri nascer. Agora tá com quase quarenta. 

Trabalha em uma autarquia de informática. Diz que é desenvolvedor de software. Está trabalhando em casa. Ele fala que a empresa está em um experimento de contingência. Quem fez faculdade usa essas palavras complicadas. 

“Trabalhar em casa deve estar sendo uma barbada.” Eu digo. 

“Nem tanto, tio. Tem os seus inconvenientes.”

“Ah, para! Eu tenho que chegar na hora de manhã cedo, faça chuva ou faça sol. E encarar a cara do patrão, que quase sempre tá lá quando chego. Escritoriozinho pequeno é assim.”

“Ah sim. Nesse projeto, isso é muito mais tranquilo. Mas ainda tem os inconvenientes.”

Ele vai falando e eu vou bebendo devagarinho.

“Tipo?”

“Nesse caso que tu falou. É ruim pegar o bus debaixo de chuva de manhã cedo, mas o bus te dá um tempo. Tipo se preparar psicologicamente para o trabalho.”

Ele continuou. “O projeto deve durar dois meses, para a diretoria e a gerência chegarem às conclusões que têm de chegar para decidirem o que vão fazer. Já se foi um mês. Mas na primeira semana eu quase enlouqueci. Enlouqueci um pouco mais porque pra trabalhar com TI já tem que ser um pouco louco. Foi a semana de se adaptar a viver e trabalhar no mesmo lugar.”

“Pareceu ruim trabalhar em casa?”

“Essa coisa especificamente foi ruim no início. Depois me acostumei.”

“Então tá. Tu te acostumou.”

“No planejamento, queriam que a gente usasse câmeras enquanto trabalhasse. Aí a equipe do projeto se rebelou. Eles voltaram atrás. Mas tem todo um controle chatinho.”

É a vez dele dar um trago.

“Controle chatinho?” Eu pergunto. 

"É. Para começar a trabalhar, eu preciso usar um software que faz a conexão com a sede. E olha só, o software, por questão de segurança, suprime a internet do meu computador. A minha conexão de internet fica funcionando só para o trabalho."

“Tu não pode acessar a internet no teu computador?”

“Enquanto estou conectado com a empresa não. E olha só, um dos meios de controle deles é justamente o log de conexão.”

“Log de conexão?”

"É. O registro do tempo que estou conectado à empresa. Lembra quando eu era criança e a conexão de internet era pelo telefone? E ficava aquele programinha mostrando o tempo que a gente tava na internet? É uma coisa parecida."

“Bah! E eu pensando que era uma barbada ficar trabalhando em casa.”

“Devia ser. Tipo, o chefe faz as demandas, propõe as tarefas, a gente faz o que é pedido e entrega. Mas não. Têm que controlarem tudo.”

“Controlarem tudo?”

“Pra ti ter uma ideia, eles montaram uma espécie de relógio ponto virtual. Então, além do controle do log de conexão, tu ainda precisa entrar em um dos tantos outros programas de controle, e fazer uma coisa parecida com bater o ponto.”

“Até aí não me parece nada demais.”

“Além da log de conexão, e desse ponto virtual, eles ainda têm mais um software de controle. A gente apelidou de canadura.”

“Por que canadura?”

"É que nem um policial. Tipo quando tu é guri e te conversando com os parça na rua, e chega aquele policial, ‘circulando, circulando’."

“Entendi.”

“O canadura atrapalha bastante. Às vezes tu tá trabalhando, e vem aquela tela branca para te dizer que tá no horário de almoçar.”

“Eita.”

“Acho que a pior parte é justo o intervalo de almoço. Enquanto a gente não completa 60 minutos de intervalo, a gente não pode registrar o retorno do intervalo. O canadura não deixa. Só que o intervalo é flexível, tu pode fazer entre uma hora e uma hora e meia. Aí tu quer entrar, acha que fechou o intervalo, mas o canadura ainda não se atualizou. Tu acha que vai bater aos 61 minutos, mas o canadura diz que ainda não tá na hora de tu retornar. Ele te diz isso, te chuta pra fora, e chama a tela de salvamento do sistema operacional. Aí tu tem que acionar a senha na tela de salvamento. E por tu estar remoto tudo demora mais. Resumo da história, tu quer registrar uma hora de intervalo, mas nessa função, acaba registrando 65 ou 66 minutos. O chato nem é o tempo perdido. É essa minúcia de controle. Cada vez que o canadura incomoda, mando para puta que pariu. Fico xingando o computador. Ainda mais com esses erros, que eles não corrigem. Eles dizem que o intervalo regulamentar é necessário, e, se não for cumprido, ficam sujeitos a multas trabalhistas. Pode ser. Mas pra mim, parece só controle e coerção.”

“Vai saber.”

“Claro que eles nunca vão concordar comigo. Se eu questionar e falar tudo isso que eu disse pra ti, vão dizer que tô viajando. E mais, né? Com essas atualizações que Congresso tem feito, duvido que multem. Nem Ministério do Trabalho existe mais.”

É isso aí. Cada um com seus problemas.



11,16,17/08/2021.

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