Depois da catástrofe de maio de 2024


Quarta-feira era o antepenúltimo dia do mês de maio de 2024. 

Fui ao centro da cidade. Eu deveria encontrar amigos, mas os amigos desistiram do encontro, depois que se soube que o local marcado para nos receber ainda não tinha se recuperado da cota de enchente que o atingiu. 

No caminho, tratei de tirar umas cópias de textos meus que pouca gente haverá de ler. 

E como tinha tempo livre, resolvi caminhar pelo centro da cidade. 

A enchente veio aos poucos. Vimos notícias de inundações nos afluentes do Guaíba, das águas do Guaíba subindo. Soubemos de comportas do muro da Mauá fechadas. Assistimos vídeos de água cobrindo rodas de ônibus na Avenida Mauá. Depois vídeos com a parte mais baixa da rodoviária de Porto Alegre alagada. Por fim, o chocante vídeo de todo o largo da rodoviária inundado. Porto Alegre vivia uma enchente mais grave que aquela histórica de 1941. As águas tomaram conta da parte baixa do Centro Histórico, do Quarto Distrito, do Humaitá, do Anchieta. Alagaram o Aeroporto Salgado Filho. Inundaram o Sarandi. 

Isso para não falar das bacias do Taquari, Gravataí, Sinos. Inundações no interior do estado e na região metropolitana. 

Tive a felicidade de não ter o lugar onde moro atingido pela enchente. 

Não precisei seguir o conselho dado pelo prefeito de abandonar a cidade. Na ocasião, cerca de 85% do território estava sem água tratada. Eu já tinha uma viagem marcada havia meses. 

Agora, dia 29 de maio, as águas começavam a refluir. 

A acrópole do Centro estava cheia de gente. Todo mundo devia estar querendo retomar suas atividades tão brevemente quanto possível. E essa parte alta da cidade, a Praça Dom Feliciano, a Duque de Caxias, a Riachuelo, respirava ares de quase normalidade. 

O estranhamento, contudo, permanecia na parte baixa. Na Praça da Alfândega, o cheiro característico do lodo seco impregnava o ar. Boa parte da vegetação estava morta após dias e dias coberta pela água misturada com esgoto e lixo. A textura marrom cobria os bancos à altura da Sete de Setembro. O som característico era de geradores a combustão e bombas d’água a esvaziar os alagamentos nos subsolos do Banco do Estado, da Caixa Federal e do shopping. 

Mas naquele bar na Ladeira, entre a Rua da Praia e a Andrade Neves, as pessoas bebiam e conversavam como se nada demais estivesse ainda acontecendo. Contudo, eu não parei para ouvir sobre o que falavam, nem perguntar sobre o que pensavam.

Caminhei em direção à Cidade Baixa. Era lá que eu deveria encontrar meus amigos. Era lá que eles provavelmente não estavam. Se o bar em que deveríamos nos encontrar estava fechado, vários outros já estavam abertos. Mais limpa que outras regiões da cidade atingidas pela enchente, a Cidade Baixa respirava ares de quase normalidade. 

Dirigi-me a um desses bares, na esquina da Lima e Silva com a República.

Bebi e comi. Talvez quem passasse por ali e me visse, pudesse pensar que eu agia como se nada demais estivesse acontecendo. Claro, esse eventual caminhante não saberia no que eu estava pensando. 


01, 03/06/2024. 

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