Uma lembrança numa camiseta
Caríssima,
Como deves lembrar, visitei Buenos Aires em 2008. A única vez em que estive naquela cidade.
Minha impressão foi a de mais uma cidade de país subdesenvolvido, com sujeira e pedintes, embora com arquitetura bem preservada, e, claro, com o charme de uma Capital Federal.
Curiosamente o amigo que me acompanhava, também em sua primeira e única viagem à cidade, contou que se sentiu como se estivesse uma cidade europeia. Difícil avaliar já que nenhum de nós dois tinha estado em uma cidade europeia. Mas sinal que ele ficou com melhor impressão da cidade que eu.
Foi bom contar com a hospitalidade da maioria das pessoas com quem interagimos, embora eu possa lembrar de algumas pessoas com bastante animosidade em relação ao turista que eu era.
Foi bom passear para Avenida Florida, pela Plaza de Mayo e ver a Casa Rosada. Caminhar pela praça em frente ao Congresso. Ir ao inevitável (para turistas de primeira viagem) show de tango. Avenida 9 de Julio. E até o zoológico.
E as também inevitáveis lembrancinhas para alguns amigos e parentes.
Para a minha irmã, eu trouxe uma camiseta azul marinho, com a palavra Argentina bordada em linha dourada. Acho que ela gostou. A camisa se desbotou, sinal que foi lavada, embora eu não me lembre de ver minha irmã vestindo-a.
Pois bem. Minha irmã faleceu, lá se vão três anos. A camiseta voltou para mim.
No primeiro outono e inverno da pandemia, quando a paranoia era maior, e eu fazia distinção rígida entre a roupa para usar dentro de casa e a para usar na rua, usei esta camiseta muitos dias, em casa.
Meus hábitos mudaram. Já não sou tão paranóico. Saio a caminhar solitariamente, seguindo uma recomendação médica de muito tempo. Quando volto da caminhada, continuo usando a mesma camiseta.
Cheguei à conclusão que não quero mais a camiseta que pertenceu à minha irmã.
Acho que ela cumpriu uma função no processo de luto pelo qual passei. Ou talvez ainda esteja passando, porque, afinal, nunca deixamos os nossos mortos, a não ser quando nos juntamos a eles.
Enfim, tenho as recordações. Tenho as fotos, que vez ou outra revejo. A camiseta não me é mais necessária.
A queres? Ou devo dar à caridade?
.
.
22/04/2021.
Doa Zé, para aquecer outro corpo e talvez outro coração. Bela crônica.
ResponderExcluir