Arcaico



As duas amigas, Lídia e Helena, tinham resolvido fazer um happy hour. Helena era vendedora, Lídia trabalhava no suporte administrativo da loja. 

Resolveram beber confraternizar porque não sabiam como seriam as coisas dali por diante. As notícias diziam que o novo vírus oriundo da China já estava no Brasil. O governador determinou que as aulas da rede estadual fossem canceladas a partir da próxima segunda-feira, e recomendou que quem pudesse, aderisse ao "home office". 

Foram a um bar na mesma Assis Brasil da loja de departamentos em que trabalhavam. Desses bares moderninhos e acolhedores, onde mulheres podem ir com menos medo de serem assediadas. O garçom informou que a partir de segunda, o bar só venderia produtos para levar e faria tele-entregas. 

Nas poucas quadras entre a loja e o bar vieram conversando sobre o perigo que se apresentava. 

Sentaram em uma mesa com vista para a avenida. Quando o garçom tomou os pedidos, Helena pediu caipirosca de morango, e Lídia de kiwi. Além disso pediram batatas fritas cobertas com queijo. 

"O dono do restaurante do Roberto disse que dependendo do que saísse, iria colocar o Roberto em casa com salário reduzido. E agora as crianças vão ficar em casa.", disse Helena.

"Quanto será que vai durar isso? Um mês e meio?", falou Lídia. 

"Não sei. Tomara que não dure muito. Essa coisa de ficar em casa à disposição da firma é legal. O Roberto vai ficar em casa com as crianças. Acho que também vou ser mandada pra casa. A loja também deve fechar. Vai ser aquele momento em família. Eu, o marido e duas crianças.”

“Não tenho certeza se estou em vantagem ou desvantagem, em viver sozinha em uma quitinete.”

“É. Não deve estar sendo fácil, depois que o Samuel foi viver com o pai.”

“Tudo bem. Ele queria experimentar. E, ele, adolescente, tava querendo começar a pôr manguinhas de fora. Daqui a pouco ia querer mandar em mim e eu não ia deixar. Ia dar briga. Aliás, já estava dando antes dele ir embora.”

“Bom, mas tu ainda está encontrando o João.”

O garçom chega com os pedidos. Elas batem os copos. As duas usam palitos para pegar as batatas. 

“O João é legal, é carinhoso, é atencioso, mas tem os problemas dele, né? É um cara travado. Sempre se achando culpado de tudo. Essa coisa da religião dele, da antiga religião dele. Lembra do caso das rosas brancas?”

“Sim. É. Coisa sem noção. Não te fazer o favor porque tu disse que era oferenda pra Iemanjá. Se tu não tivesse falado na santa, garanto que ele tinha comprado.”

“É. E ele disse que deixou a igreja faz tempo. Não faz sentido. É essas coisas que digo que o homem é complicado. Culpa. Fala que quando a menina da igreja começou a dar em cima, ele se deixou levar. Aí arruinou o casamento, diz que o filho se decepcionou com ele. Crise total.”

“Tu já tinha contado essa história.” 

“Aí ele diz que eu ajudei ele, que desde que me encontrou eu fiz ele reavaliar a situação, e que, muita conversa depois, achou que era melhor sair de casa mesmo.”

“Não deve ter sido fácil.”

“A gente estava se encontrando escondido até aquela vez no motel, quando ele disse ‘foda-se’, e que não ia mais voltar pra casa e ia ficar comigo. Eu até me espantei porque ele nunca dizia foda-se. Não era de usar palavrão.”

“Mas tá tendo alguma treta agora?”

“Mais ou menos. A casa da minha irmã na praia vai ficar vazia na Páscoa. Eu convidei ele pra gente passar o feriadão lá.”

“Legal. Mas por que eles não vão pra praia?”

“Essa história do vírus novo. Ela acha melhor ficar em casa, porque não sabe bem o que vai ser.”
“Ah sim. E aí?”

“O João não quis. Ou quis. Mas disse que só iria no sábado.”

“Como assim?”

“Disse que na Semana Santa, a noite de quinta pra sexta é um momento profundo. Bom pra reflexão.

“Como assim? Mas ele não largou a igreja de mão?”

“Largou. É um troço louco, que nem se negar a comprar as rosas pra Iemanjá. Enche.”

“E o que tu vai fazer?”

“Não sei se topo ou já meto um pé na bunda.”

Tendo dito isso, Lídia tomou um gole. Helena esboçou um sorriso. 


31/03/2021. 

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