Lutos


Quanto mais tempo de vida, mais perdas, como me disse uma amiga, comentando um outro texto. 

Na memória da família se dizia que “antigamente” as rádios só tocavam música clássica na Sexta-Feira da Paixão. Pode ser. Embora tenham me dito que o primeiro rádio entrou na casa da família em 1962 (eu ainda não existia). Antes disso, eventualmente era ouvido na casa de vizinhos considerados mais ricos. Isso na cidade de Rio Grande. 

Depois, muito tempo depois, essa narrativa familiar encontrou eco com minha sogra. Restrições. O luto religioso na Semana Santa. O luto até por contraparentes, quando do falecimento de alguém. 

Essas memórias familiares encontram algum respaldo histórico. Em sua tetralogia da Ditadura (eu li uma tetralogia. Na nova edição mais um livro foi adicionado. Virou uma pentalogia. Preciso reler) Elio Gaspari fala do poder político (além do espiritual) que a Igreja Católica exercia até o final da década de 1960, em uma população ainda maciçamente rural e católica. 

Mas passemos. 

Em nossa família, eu e minha irmã fomos educados para ver a morte como uma coisa natural, parte da vida. Sim, parece um truísmo, mas a morte é também uma catástrofe, principalmente se precoce. 

Fato é que chorei muito a morte de minha avó. Eu tinha seis anos, e perdi alguém que era muito doce comigo. E, criança que eu era, não me foi permitido ir ao seu velório ou enterro. Após muitas sessões de terapia pude perceber que isso me fez bastante mal. 

Mas passemos. 

Como eu dizia, em família a morte era encarada como um processo natural. E quem nunca riu, talvez até contou piada em velório, mesmo com toda a dor que estivesse sentindo? Chorei, e continuaria chorando por muito tempo quando perdi meu pai. Só não chorei mais porque queriam me consolar. Em especial um tio, irmão de minha mãe. Eu não queria ser consolado. 

Mas depois de velório e enterro de meu pai, nos reunimos. Lembramos da vida de papai e até rimos. O clima só voltou a pesar quando uma vizinha bateu à porta para trazer seus sentimentos de pesar e solidariedade. Coisas da vida (e da morte). 

Minha sogra queria ficar de luto por um período por conta da morte de papai, mas foi demovida por minha esposa, uma vez que nossa própria família não guardava um luto restrito. Isto é, roupas discretas, não ouvir música, se fechar para refletir. Não. Não fazíamos isso. 

Seguimos. 

Cinco anos após meu pai, minha mãe faleceu. De um câncer de mama que ela se recusou a tratar. Dizia que já tinha cumprido sua missão de vida. Cuidara dos pais e do marido e os filhos já estavam criados. O fato de os filhos ainda estarem por ali não foi motivo suficiente para ela continuar lutando. 

Seguimos. 

Em 2017, após uma série de dores e de exames, minha irmã descobriu que estava com câncer de pâncreas. Em oito meses, uma mulher que lutava contra a balança perdeu trinta quilos. Em oito meses, uma mulher que tomava os cuidados possíveis para a saúde, exames para controle de glicemia e colesterol, pressão sanguínea, faleceu, sem que a medicina tivesse nada de efetivo para a cura. Apenas cuidados paliativos. E de novo eu quis chorar até morrer. Mas chorar até morrer dificilmente é possível. 

Éramos quatro. Fiquei um. 

Como as perdas não param. Nos últimos dois anos perdi sogra e casamento (“mea culpa, mea maxima culpa”). Minha cunhada, “sister-in-law” (ex-cunhada?). 

E nem mencionei o avô (1979) e o sogro (2013). Perdas ocorridas depois de períodos mais ou menos lentos de definhamento, o que de alguma maneira nos direciona e prepara para o pior. 

Por fim, morreu o cachorro. O Pity. O melhor e mais inteligente cachorro com quem convivi. 

De quebra, a namorada (namorada? A natureza de nosso relacionamento foi complexo. Difícil definir) me deixou. 

De repente, tudo ficou meio cinza. As roupas coloridas deixaram de fazer sentido. Como se cada luto viesse potencializando o seguinte. 

E também como se a morte, rondando ao redor, me dissesse, “tua hora está chegando. Olha só. Não restam muitos ao teu redor.” 

Mas não há de ser nada. 

Logo, logo volto a vestir camisa vermelha. 


08/01/2021. 

Comentários

  1. Dói, dói pra sempre. Cada perda leva um pouco de nós, da nossa história, dos nossos sonhos. Deixamos de ser inteiros, perdemos pedaços. Seguimos. Voltamos ao vermelho, mas os vazios permanecem, fazem parte de nós.

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  2. Senti tua dor. Sinto as minhas. E de tantos outros que gritam dentro de mim.

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    Respostas
    1. Obrigado pelas tuas palavras, Dio. Enquanto vivemos, vamos seguindo com nossas dores.

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