Convite Especial
Eu tinha recebido o convite por uma rede social.
"Venha compartilhar comigo o lançamento de meu livro Contos Sem Nexo. Farei sessão de autógrafos no próximo dia 3 de dezembro, uma quinta-feira, dois dias após o meu aniversário de 60 anos. Venha celebrar comigo."
Dos contatos que venho mantendo com João, sempre mais por redes sociais ou aplicativos de mensagens que frente a frente, ele costumava reclamar da vida, dos muitos momentos de solidão.
Reclamava que depois da aposentadoria, os encontros com os antigos colegas de trabalho tinham rareado muito. Eu costumava responder que em um país como o nosso, ele era uma espécie de privilegiado por ter conseguido se aposentar, inclusive mais jovem que a idade mínima estabelecida pela mais recente reforma das aposentadorias.
Sarcástico, ele dizia que era verdade. E que se depender desses políticos de agora, vão fazer reformas de cinco em cinco anos, para que em um futuro não muito distante não haja aposentados, e todos tenham que trabalhar até morrer. Claro, os que conseguissem trabalho. Os demais iriam viver da caridade alheia, ou morrer de fome. "Miséria é miséria em qualquer canto", como dizia a antiga música dos Titãs.
A sessão de autógrafos seria em um bar na região boêmia da área central da cidade. Ele dizia que gostava daquele bar, apesar de achá-lo muito escuro, e de pensar que os garçons demoravam demais para atender, sem contar que vez ou outra traziam o pedido errado. Dizia que ali tinha, afinal, se dedicado um pouco à aspiração de ser escritor, algo com que sonhava desde criança. Ali tinha participado de oficinas de criação literária.
Na noite determinada, noite quente de verão, eu cheguei mais de uma hora após o horário que ele estabeleceu para o início da sessão.
Lá estava ele. De fato o bar era escuro, mas para a ocasião ele trouxe uma luminária portátil de casa, manha dos tempos da oficina. Tinha radicalizado, com uma garrafa de uísque sobre a mesa, e outra de água com gás.
Junto a ele, apenas mais três pessoas, dois homens e uma mulher, velhos amigos que lhe eram uma espécie de esteio emocional, apesar da amiga chamá-lo de sorumbático quando ele apelava para a autodepreciação. Mais o funcionário da editora de autopublicação que vendia os livros, conforme tinha sido contratado.
Ficou feliz quando me viu. Levantou-se da cadeira para me cumprimentar, embora não parecesse muito firme. "José! Que bom que tu veio!", me disse, me abraçando.
Eu o achei muito mais magro que da vez anterior que o vira. E bastante pálido. Mas talvez fosse do tanto que ele já tivesse bebido. A voz soava pastosa.
Era difícil descrever a expressão de João. Estava sorridente, ao mesmo tempo em que franzia constantemente a testa. Alternava sorrisos amplos e umas poucas palavras, com lapsos de silêncio.
Adquiri o livro para ser autografado, e como ali em volta havia pouca gente, sentei junto à mesa.
"Pois é, José, que bom que tu veio.", repetiu. "Sabes quantos convites eu distribuí, via rede social? noventa e cinco. Sabe como é rede social, né? Tem os amigos e conhecidos, e os amigos dos amigos que acabam por fazer parte da nossa rede."
"Sim."
"Ainda gastei uma grana com assessoria de comunicação. Pra sair notinha em jornal e saite especializado."
"É mesmo?", respondi perguntando. Ele devia ter gasto bastante com isso.
"Sabes quantas pessoas vieram?"
"Quantas?"
"Seis, além de ti agora, da Bia, do Marcos e do Milton aí.", e soltou um risada, que me soou um pouco falsa.
Para entrar no clima, pedi uma dose dupla do mesmo uísque com gelo.
Àquela altura, João já tinha bebido algo como um quarto ou um terço da garrafa que tinha sobre a mesa. Bia bebia água mineral. Marcos cerveja e Milton guaraná.
Depois de mim não chegou mais ninguém.
Continuamos bebendo e conversando. Contando piadas. Falando dos livros que estávamos lendo ou que havíamos gostado muito.
João, goleado, ria e quando falava, falava alto.
Havia poucos clientes no bar, além de nós.
Em determinado momento, Bia comentou que João devia comer alguma coisa, ou beber um refrigerante. "Tu parece bem mal, João."
João não quis. Disse que era bobagem. Ainda resolveu tomar um longo gole.
Não dedemorou muito e João encostou a cabeça na mesa. Apagou.
Tentamos acordá-lo. Não conseguimos. O deitamos no chão, levantamos as pernas. Nada. Tivemos que chamar a emergência médica.
A ambulância o levou para o pronto-socorro. Bia e Marcos foram atrás. Eu e Milton acabamos indo embora, pedindo que o casal enviasse notícias.
Dias depois encontrei João novamente. Estava hospitalizado. Me falou de seu câncer no pâncreas, e de como o caso era sem esperanças. Que aguentou a noite de autógrafos com muito analgésico, mais o uísque.
Repetiu que ficou comovido que participei da sua celebração.
17, 30/11/2020, 28/01/2021.
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