Fim de semana na serra


Naqueles dias, já fazia três meses que a peste estava entre nós. 

O teletrabalho tinha se instalado, para quem podia, como era o meu caso, mas muita gente tinha sido demitida. Muitos também foram colocados em licenças com redução de salários. 

Era um inverno sem dias muito frios. 

Eu e o crush estávamos completando um ano de relacionamento. Tínhamos nos conhecido por um aplicativo. Eu, um homem a caminho dos cinquenta, ela também, mas bem mais atrás. Vindos de relacionamentos fracassados, ambos vivíamos sozinhos, cada qual em sua casa. Pessoas de meia idade, eu tinha diabetes, e ela teve asma e bronquite, embora sua crise mais recente tivesse sido no final da adolescência. 

Por conta desse aniversário de namoro, decidimos passar um final de semana na serra, na região produtora de vinhos. 

Reservei um hotel bacana, e na manhã de sábado partimos. 

Eu havia levantado com uma leve coriza, mas a sensação foi dissipando. 

A estrada que leva da capital à serra é sempre bonita, ladeada pela vegetação das encostas; em boa parte preservada. Um verde de encher os olhos. 

Chegamos ao hotel, colocamos as máscaras, e fizemos o check-in. Terminado esse processo, subimos para o quarto. 

Valeu a pena ter gastado um pouco mais com a reserva para um quarto mais alto. Apesar de não ser muito grande, o quarto oferecia uma janela panorâmica, com vidros escurecidos, e era possível ver boa parte da cidade, e dos morros no horizonte. 

Empolgados pela visão, e pelo momento que vivíamos juntos, transamos. Foi tão bom!

Ao anoitecer, a coriza retornou. Tomei uma dose de antigripal que sempre tenho comigo. Fundamental depois de certa idade. 

À noite colocamos as máscaras e descemos para o bar do hotel, que era aberto ao público em geral. Tomamos vários gins tônicas e comemos pizza. 

Às dez, o garçom nos avisou que o bar estava fechando, seguindo os protocolos estabelecidos pelo governo, por causa da peste. Informou que poderíamos ficar mais uma hora, mas aquilo quebrou o clima. Retornamos ao quarto.

No caminho, o crush espirrou algumas vezes. Reclamou que também estava com coriza. 

Na manhã seguinte, a coriza tinha voltado para mim. Eu estava com dores de cabeça e musculares. Ela continuava espirrando. 

Apesar dos sintomas, colocamos as máscaras e descemos para o café. 

Decidimos seguir com o planejado. Seguiríamos pela estrada das vinícolas, e, se estivesse aberta, visitaríamos a que ela mais gostava. 

Fechada a conta do hotel, fomos. 

A estrada serpenteava entre morros, alguns com parreirais. Várias vinícolas. A maioria fechada. A vinícola desejada estava aberta. Discretamente aberta. O porteiro insinuou que estavam com atividades restritas. Na minha cabeça, ele estava era conferindo se não éramos algum tipo de fiscalização. 

Mas vencido o porteiro, pudemos constatar que a vinícola estava quase normal, com outros visitantes, e produtos à venda. 

Saímos do carro e colocamos as máscaras. 

Na loja descobrimos que as visitas à cave estavam sendo feitas. Nos candidatamos a uma. 

Uma moça simpática e atenciosa nos guiou por aquele imenso porão, onde milhares de garrafas de vinho estavam guardadas. Contou das origens familiares do negócio e ofereceu a degustação. Nos revezamos no ritual de caminhar, ouvir, tirar a máscara, provar a bebida, colocar a máscara, caminhar mais um pouco. A visita durou quase uma hora. 

Eu me sentia piorando. A dor de cabeça foi piorando à medida que a visita avançava. Comentei com o crush. 

No final da visita, na última degustação oferecida, um espumante "brut", eu provei e não senti nem cheiro nem sabor. 

Ainda fizemos compras na loja da vinícola. Provamos duas variedades de "brandy". Ela disse que gostou bastante de ambos. Eu só senti o calor do álcool na garganta. 

Como não me sentia muito bem, pedi que ela dirigisse na volta à capital. 

Ela aceitou. Continuava espirrando com certa frequência. 

Quase tudo tinha acontecido como programado, mas nossos semblantes estavam sérios. 


08/12/2020. 


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