Revisitando Moacyr Scliar



Faz poucos dias escrevi uma crônica rememorando meus dias de estudante secundarista, caminhando pela Rua Duque de Caxias.

Para quem não conhece Porto Alegre, uma rua no ponto mais alto do centro histórico da cidade. Onde estão localizados a sede do Governo do Estado e a Catedral Metropolitana. 

Nesse texto comentei que eu subia e descia a Duque, acompanhado pelos personagens de Moacyr Scliar que também andavam por aqueles caminhos. 

Resolvi reler livros de Scliar para ver se minha lembrança era correta, e também para desmisturar os dois livros que se fundiram na minha memória. Estes são O ciclo das águas e Os deuses de Raquel. 

Da minha formação como leitor de Scliar ainda constam A Guerra do Bonfim, sobre os meninos judeus porto-alegrenses, que contavam piadas e riam, e se davam tapinhas costas enquanto riam e rolavam pelo chão de tanto rir. E brincavam de guerra depois de ver filmes de guerra nos cinemas da Osvaldo Aranha, enquanto a guerra acontecia na Europa e judeus eram exterminados em fuzilamentos sumários, em câmaras de gás, e por exposição ao frio e à fome. É isso que me lembro. Também posso estar enganado a esse respeito. 

Teve ainda Cavalos e Obeliscos, aquele estranho livro de Scliar sem temática judaica. Foi o que pensei na época. Um livro de Scliar sobre a Revolução de 30. 

E havia as crônicas na Zero Hora. Dessas crônicas me lembro do peculiar torcedor do Cruzeiro de Porto Alegre (que hoje está em Cachoeirinha, se não me engano), e das referências ao filho, Beto Scliar. 

Voltando aos personagens de O ciclo das águas e Os deuses de Raquel. Eles estão em Porto Alegre, mas não necessariamente na Duque. 

Começo por Os deuses de Raquel, que efetivamente li durante o ensino médio. Caminhei com Raquel e Raquel caminhou comigo. Mas não necessariamente pela Duque. A não ser quando eu a carregava. 

A Raquel do título é uma mulher, nascida em Porto Alegre, filha de um judeu húngaro, secularizado e latinista. Como não havia muito lugar para latinistas na Porto Alegre do início do século XX, o pai de Raquel se estabelece como comerciante, com uma ferragem no Partenon, próxima do Hospital São Pedro. 

O livro aborda a questão do judaísmo, através dos conflitos do pai de Raquel com a comunidade do Bom Fim, ou contato dela com outras religiões. E, claro, da própria Raquel com o Deus dos Hebreus, que vez por outra fala no livro. 

Nesse livro, me parece, Scliar conseguiu o efeito de Joseph Roth, com A lenda do Santo Beberrão. O crente que ler o livro pode lê-lo como obra moral, reverente à religião. O leitor irreverente, lerá o livro como sátira. 

Já O ciclo das águas me despertou memórias como as tão citadas madeleines de Proust, em No Caminho de Swann. Não, não li Proust, mas todo mundo fala da personagem comendo o biscoito e relembrando eventos. 

Enfim, adquiri esse exemplar em um sebo online. Ele é semelhante ao exemplar que li em 1981, possivelmente da mesma edição, editada então pela Editora Globo, quando esta era gaúcha e pertencia ao mesmo grupo da Livraria do Globo, aquela da Rua da Praia. 

E como eu disse, reler esse livro me fez ser transportado para 1981, quando nossa professora de língua portuguesa e literatura (por que me esqueço do nome de minhas tão importantes professoras de português, que conseguiram me inculcar o hábito da leitura?), fez um seminário sobre o livro que todos deviam ter lido. Era a antiga oitava série do primeiro grau. Acho que hoje é o equivalente à nona série do ensino fundamental. 

Lembro que durante esse seminário, o colega Eliseu (por onde andará?) disse que um dos personagens principais, Marcos, era, na verdade, Moacyr, o Scliar. E lá veio a professora esclarecer que, se autores se baseiam em pessoas para criarem seus personagens, não podemos confundir autor e protagonistas (ou antagonistas) em obras de ficção. 

Também de temática judaica e de migrações, o livro fala de Esther, a filha do mohel de alguma aldeia no leste da Europa que vem parar em Porto Alegre. E de Marcos, um professor de biologia, preocupado com saneamento básico e com a poluição de um arroio na zona sul da cidade. 

Que mais posso dizer? Nada! Quer dizer, há muito a ser dito, mas não em um texto parecido com uma crônica. Certamente se pode escrever monografias, dissertações e teses dessas obras, juntas ou separadas. 

Mas paro por aqui. Já revisitei Moacyr Scliar. Em minha cabeça já separei essas obras que estavam misturadas. 

Ave, ou talvez, shalom, Moacyr Scliar! 


SCLIAR, Moacyr. O ciclo das águas. Porto Alegre: Globo, 1977.


SCLIAR, Moacyr. Os deuses de Raquel. Porto Alegre: L&PM, 2010. 


05/01/2022.

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