Duque



Às vésperas do dia em que se comemora a Proclamação da República no Brasil, Avelina publicou uma crônica chamada "A rua onde nunca morei".

Uma crônica memorialística celebrando as suas lembranças da rua que está na acrópole do centro da cidade de Porto Alegre. 

A rua em que ela nunca morou, mas palmilhou, sendo levada pela mãe na infância, depois, junto com as colegas como estudante secundarista, por fim, como profissional, trabalhando na Praça que está no centro político do Rio Grande do Sul. 

A crônica de Avelina disparou na minha cabeça a canção Credo, de Milton Nascimento e Fernando Brant (“Caminhando pela noite de nossa cidade / Acendendo a esperança e apagando a escuridão / Vamos, caminhando pelas ruas de nossa cidade / Viver derramando a juventude pelos corações (….)”).

Eu conheci a música no álbum Clube da Esquina 2. Um dos primeiros álbuns que adquiri. 

Essa rua em que nunca morei também já foi minha. 

Aliás, nunca morei na região central da cidade. 

Mas entre 1982 e 1984, de segunda a sexta, entre março e novembro, eu também palmilhei essa rua. 

Foram meus anos de adolescência, e de estudos secundários noturnos da Escola Senador Ernesto Dornelles. 

Uma escola que parecia longe demais para quem trabalhava como office-boy no miolo do centrão (Rua Vigário José Inácio entre Voluntários e Otávio Rocha). 

A Duque que deve ter parecido uma sucessão de coxilhas aos pioneiros açorianos. Subir para a Praça da Matriz. Descer até a Bento Martins. Subir, de leve, até a General Portinho. Descer até a Vasco Alves. Ou vice versa. O colégio fica na esquina da Duque com a Vasco Alves. 

Gerava um efeito psicológico curioso. Quando eu percorria a Duque para ir à escola parecia que eu não chegava nunca. Quando eu decidia ir pela Rua da Praia parecia que eu chegava rapidinho. 

O primeiro ano, 1982, foi o ano das maiores inquietações. 

Tempo de sair com o Marco, o Antônio e mais um ou outro colega cujos nomes a memória falha em recordar. Por onde andarão Marco e Antônio?

Tempo de abraçar uma garrafa de Velho Barreiro às sextas-feiras, e subir a Duque falando alto e cantando. 

Era um tempo em que Simone, a cantora de MPB e ex-jogadora de basquete, havia ressuscitado a canção “Pra não dizer que não falei das flores”, e nós, cantando-a após as aulas, perto do Palácio Piratini pensávamos que fazíamos grande coisa. Achávamos que talvez tivéssemos alguma coisa a temer. Não, praticamente nada aconteceu, a não ser uma vez que dois brigadianos nos pediram para parar de cantar, com toda a gentileza. Atrapalhávamos a paz pública. 

Foi nesse tempo também que o Marco se apaixonou pela música Credo, da qual falei antes. Devemos tê-la cantado naquelas noites. 

Subíamos a Duque e descíamos a algum boteco na José do Patrocínio, ou da República. Também os nomes desses estabelecimentos a memória apagou. 

O ano do primeiro grande porre da vida. Daqueles de não lembrar exatamente como cheguei em casa. 

Enfim, ainda em 1982, eu sentei no cordão da calçada, perto do auditório da Assembleia Legislativa e chorei. O choro da crise da adolescência até então sem rumo. 

Os dois anos seguintes foram mais tranquilos. 

Em 1983 comecei a namorar a Linda e fiz um trato com Jesus. Isso trouxe alguma tranquilidade para um coração inquieto. Pelos 30 anos seguintes.

Tendo a Linda ao lado, subir a Duque após a aula ficou mais sereno. 

Sim, vencíamos os quilômetros entre o Ernesto e a Praça Parobé a pé. Assim economizávamos na passagem da linha 51 Duque, que, de qualquer maneira, demorava a passar. 

Subíamos acompanhados por personagens de Moacyr Scliar que também andavam pela Duque. 

A Duque também foi minha. 

Talvez não tanto quanto foi da Avelina. 


15/11/2021. 

Comentários

  1. José Alfredo, ler sua crônica numa madrugada insone foi como ter um amigo para conversar e beber enquanto o sol promete horizonte. Belíssimo.
    Outra coisa: já conversou com a Vanessa sobre a escola?
    Abraços, parapenz, Rubem

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