Hora Certa


Vejo o relógio sobre a mesa. Está parado. Precisa que a pilha seja trocada. É um relógio que poderíamos chamar de social. Caixa dourada, mostrador claro, traços no lugar dos números. Pulseira em couro marrom. Couro legítimo. Está gravado. 

Eu sempre gostei de relógios. O primeiro que adquiri foi um modelo com algarismos romanos, logo que comecei a trabalhar, no início dos anos 1980. Esse se perdeu na poeira do tempo, perdido em alguma mudança, ou simplesmente descartado porque estragou. 

Foram vários relógios ao longo do tempo. A maioria comprada a preços muito acessíveis na Galeria do Rosário, ou outras galerias de quinquilharias do Centro de Porto Alegre. De todos os materiais. Metal, plástico, couro, borracha. Muitos estragaram. Baixa qualidade. Alguns foram doados. Porque, de qualquer maneira, se possuímos cinquenta relógios, é deselegante usar mais que um de cada vez. 

Possivelmente lá por 1968 ou 1969, meu pai quis, ou precisou, comprar um relógio. Foi comprado em inúmeras prestações, com a ajuda da renda da minha irmã que recém começara a trabalhar. 

Era movido a corda. Lembro de quando eu era criança, a cada noite papai tinha o seu momento de dar corda no relógio antes de deitar. Nesse ritual ele também dava corda e ajustava o despertador da cabeceira. Quando faltava pouco tempo para se aposentar, ele chamava o despertador de tirano. 

Voltando ao relógio que abre este texto, devo confessar que ele é um "döppelganger". Um duplo. Foi adquirido para conviver e substituir o relógio da década de 1960. O relógio de meu pai. Mesmo que quem os olhe, diga que não são tão parecidos assim. 

Não tive paciência para dar corda todos os dias. 

O relógio, herança material mais significativa de meu pai, está guardado. 

Com cuidado e carinho. 

Parado, marca o horário certo duas vezes ao dia. 


01/03/2021.


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