A Stalinista


Meu amigo me contou que esse incidente aconteceu com ele. 

Participava de uma oficina literária que acontecia à noite, em um reservado de uma livraria-café. A técnica da noite era crônica. 

O orientador da oficina já havia passado informações básicas sobre uso da crônica. Tamanho, a questão da coloquialidade no texto. Enfim, as tecnicalidades. 

Meu amigo disse que tudo transcorria bem até o momento em que a oficineira que ele chamou de A Stalinista lesse sua crônica. Não a havia apelidado de Stalinista porque ela realmente venerasse Stálin. De fato ele não sabia a opinião dela a respeito do líder da antiga União Soviética. O apelido foi por conta da postura dogmática da pessoa. Comenta que poderia chamá-la de inquisidora, mas como Deus estava um tanto quanto de lado na sociedade atual, talvez uma dogmática sem metafísica se apresentasse melhor. 

A crônica versava sobre a perda de uma poeta palestina morta em um bombardeio israelense na mais recente guerra por aquelas bandas. Partindo desse triste fato, a Stalinista continuou falando da condição do povo palestino nos dias correntes, atribuindo as misérias desse povo ao estado de Israel. 

Terminada a leitura, feitas as observações de praxe nesse tipo de oficina como uma correção ortográfica aqui, um comentário sobre o texto estar longo ali, meu amigo resolveu comentar o conteúdo. 

Embora uma voz na cabeça dele o tenha advertido que talvez não valesse a pena, que podia dar errado. Talvez a voz na cabeça fosse a expressão de uma intuição a partir das posturas e comentários que a Stalinista já havia feito em outras aulas. 

E o comentário que saiu da boca de meu amigo começava com algo como “Israel não tem toda a culpa pelas misérias dos palestinos”, começando pela citação da primeira guerra árabe-israelense (1947-1948), em que uma associação de países árabes não aceitou a partilha daquele território entre um estado para os judeus e outro para os árabes. A guerra foi perdida pelos exércitos árabes, e consolidou a criação do estado de Israel. Além disso, ele lembrou que durante quase vinte anos, a Cisjordânia foi ocupada pela Jordânia, e a Faixa de Gaza pelo Egito, sem que nesses territórios fosse criado um estado palestino. 

A Stalinista subiu de tom. Na prática condenou o sionismo moderno. Misturou a ideologia que embalou a criação do moderno estado de Israel com colonialismo e imperialismo. Associou a expansão dos territórios do estado hebreu em prejuízo dos palestinos à expansão da Alemanha Nazista sobre seus vizinhos na Segunda Guerra. 

Meu amigo defendeu o direito dos israelense de permanecerem em seu estado, e relembrou as razões para que o moderno sionismo pudesse existir. 

E, bem, meu amigo conta que ficou nervoso, se exaltou, e, num gesto impensado, bateu na mesa. Ele pensa que percebeu que aquilo foi constrangedor, mas não muito. Houve certo silêncio na mesa. Ele demorou um pouco para perceber a violência do ato, e o quanto aquilo poderia representar de machismo. 

No dia seguinte, em troca de mensagens com o orientador da oficina, pediu desculpas ao grupo, em especial, a ela, à Stalinista. 

E no próximo encontro pediu desculpas pessoalmente, ao grupo e a ela. Me contou que achou tudo meio constrangedor, para o grupo e para ela. Mas que era o possível a ser feito. 

Naquela noite a oficina falava no gênero ensaio. 

Feitas as leituras, as pessoas ficaram conversando um pouco, antes de se dispersarem. 

Nesse momento ouviu a Stalinista comentar algo como “O Dia D foi uma tremenda peça de marketing. Nem teve tanta importância assim para o desfecho da Segunda Guerra…” 

Ele olhou para ela, pensou no que poderia contra-argumentar, olhou para sua xícara de chá. 

No fim, me contou ele, ficou quieto na hora. Mas me disse que pensou que talvez Stálin ficasse orgulhoso dela. 


12, 16/11/2023. 

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