Um substituto chinês


Pai,


No próximo domingo, 11 de agosto de 2024, será dia dos pais. É um momento para pensar em ti. 

Sim, sou pai. Sim tive um “pai na lei” como dizem os anglófonos, isto é, meu sogro. E tive esse privilégio de ter tido um pai que me acompanhou até o fim de sua vida. De fato, foi por pouco tempo. Dos cerca de 23 anos em que estivemos juntos sobre esse planeta, os meus primeiros cinco, são de não lembranças. Dos seis aos doze, são as lembranças esparsas de ti indo dormir muito cedo, e depois acordando muito cedo. Ias dormir antes de mim, e levantavas para trabalhar antes que eu me acordasse. 

Então, entre os meus doze e quatorze anos parece que foi o período em que acompanhei mais teus gestos com os relógios. Aqueles que relatei no outro texto. O ato de dar corda no relógio Technos todas as noites. Eventualmente nos meses com menos de 31 dias, ter que girar os ponteiros do relógio para ajustar o dia (o velho Technos não tem ajuste apenas para o calendário). O ato de dar corda no despertador todas as noites. Os talvez cinquenta anos de trabalho precário, o despertador apelidado de tirano. Xingar o despertador, um desabafo possível. 

E quando completei quatorze anos, fui eu que comecei a trabalhar. E, se não me engano, estavas te aposentando. Fato é que quando comecei a trabalhar, passei a estudar à noite, e assim nossa convivência continuou rara. Eu tinha trabalho e estudo durante a semana, e comecei a inventar as atividades que me tornariam um adulto nos finais de semana. Tempos de me descobrir, durante a adolescência e juventude. Logo eu estaria casado, logo tu serias avô, logo tu irias embora, me deixando aqui. Deixando todos nós aqui. 34 anos depois aqui estou eu, sobrevivendo e vivendo. 

Naquele outro texto, falei um pouco do mundo dos relógios baratos de hoje em dia. Não falei de um em especial, esse também um relógio chinês. Poderia ser chamado de retrô. Nos dias dos “smart watches”, eis um relógio analógico, a corda. Tem o tamanho aproximado do velho Technos. Não tem calendário. Não custou caro, e os chineses o produzem provavelmente aos milhões. Neste país tão violento, eu o uso sem medo. Todos os dias nos períodos em que o estou usando, eu preciso dar corda nesse relógio. 

Quando eu faço isso, dou corda no relógio, acho que de alguma maneira, me ligo a ti.


.


.


03, 05/08/2024. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Poemas de Abbas Kiarostami na Piauí de Junho/2018

Jussara Fösch partiu em 16 de abril de 2024

Caras Carol, Gian e Rubem: quem tem amigos tem tudo – lembranças da sessão de autógrafos de Confinado um diário da peste