Carta à mãe em novembro de 2021



Oi, mãe. 

Hoje é 23 de novembro de 2021. Há pouco tempo era 19 de novembro. Para o Brasil, Dia da Bandeira. Para mim, data da tua morte. Que na minha cabeça nunca ficou claro se foi mesmo dia 19 de novembro de 1995, ou talvez dia 18. Sei que foi por dias assim. Eram dias quentes de novembro de 1995. Era primavera, mas se fosse verão não faria diferença. 

A morte depois de alguns dias de agonia. Solitária no hospital. De um câncer originário de mama, mas que já distribuíra metástases inclusive para o teu cérebro. 

O final do processo que começou com um nódulo no seio, que decidiste não tratar, porque afinal, “já não tinhas motivo para continuar a viver depois de enterrar mãe, pai e marido”. Deves ter dito isso lá para 1991, pouco tempo depois do falecimento do pai. 

Disseste isso, e estávamos ainda ali. Eu, minha irmã, e teu neto. Todos teus. Todos saídos de ti. Não teres motivo para viver me doeu. 

Por que escrevo tudo isso agora? 

Bem, como eu disse, há pouco foi mais um aniversário do teu passamento. 

E minha analista me cobrou escrever uma carta para, digamos, te perdoar. 

Como se fosse o caso. 

Nas sessões de terapia a gente vai meio que se libertando de certos fardos que colocamos em nossas próprias costas. 

Sempre achei que entre todos do nosso núcleo familiar, a tua morte foi a que menos lamentei (éramos quatro, agora sou só eu. Só eu sofri a morte de todos vocês que agora estão juntos aí, onde estiverem). A analista me pergunta como era possível medir isso. E eu prontamente, adepto de certo método científico, respondi, “em volume de lágrimas vertidas”. A analista respondeu que as coisas não eram assim. Claro! O que uma analista poderia dizer mais? 

Entre as hipóteses levantadas pela analista, está a de que essa declaração da falta de motivos para viver possa obscurecer um medo da morte, e mesmo um medo da via dolorosa que pode ser um tratamento contra o câncer. É. Pode ser. 

Na noite do dia 19 passado encontrei teu neto em um pub. Comentei  com ele sobre isso, que agora estou escrevendo aqui. 

Alcoolizados como estávamos, ele discordou da explicação da analista. 

De quebra ainda disse que eu ficava muito fixado em datas de morte. Se não em datas de morte, em datas. Mas não tenho certeza se ele disse assim. Sei lá, minha memória edita as recordações. Ainda mais que estávamos em pub. Alcoolizados. 

Claro que nas sessões de terapia falo muito na dona Nadir. Em como ela era uma pessoa assim, um pouco, ou um tanto, repressora, porque reprimida. Difícil de mostrar afeto. 

O que faz com que muitas vezes eu explique minhas dificuldades de mostrar o que sinto como resultado da criação que tive contigo. 

Mas garanto que não estou tentando te culpar pelo que faço ou como me mostro. Só procuro buscar explicações. E escapar do labirinto de sentimentos em que me encontro. Mas é claro também que o labirinto não tem saída. Nossos sentimentos continuam nos envolvendo. Desde como fomos criados. As mudanças pelas quais passamos. A mudança de afetos em relação às pessoas que nos rodeiam. 

Desse labirinto a única saída definitiva é a morte. 

Acho que pensam que penso demais na morte. Não acho. Acho que só penso o suficiente. Até porque já a vejo ali ali. 

Minha analista discorda. 

A minha teoria é que como todos no meu núcleo familiar morreram por volta de 70, eu não teria mais que vinte anos de vida até ali. A analista diz que isso não quer dizer nada, e nada impede que eu viva mais 40. Viver é bom. Pelo menos tem sido bom para mim. Talvez viver mais 40 seja bom. Ou talvez não. Mas isso pertence ao futuro. E o futuro a Deus. 

Enfim, mãe, para terminar o blá, blá, blá. Não creio que haja o que eu deva perdoar. 

Como diz a própria analista, tu foste a mãe que pudeste ser. Nem mais, nem menos. A melhor mãe que podias ser pra mim, tenho certeza. 

“Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo, são crianças como você, o que você vai ser quando você crescer”. 

Talvez no futuro meu filho escreva uma carta assim, em relação a mim. 

Hoje vivemos a relação que podemos ter. E eu tento ser o melhor pai que consigo ser. Ou talvez não. Talvez eu não seja bom o suficiente. 

Saudades de ti, mãe! Me fazes falta. Como o pai. Como a Lúcia. 

Como não posso trazer vocês de volta, vou vivendo, aguardando o momento de encontrar (reencontrar?) vocês. 


23/11/2021. 

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