Cara Carol – I


Cara Carol,


Não sei se já te disse que costumo ler a revista Piauí (a própria redação da revista a chama de piauí, assim, com letra inicial minúscula, mas acho estranho). Se já não disse, digo agora. Houve inclusive um tempo em que cheguei a assinar a revista. Minha assinatura caducou, perdi alguns números, e ultimamente tenho comprado em banca (e, agora, pensando, comprar revista em banca era uma coisa tão natural, e hoje se tornou tão extraordinário por conta do sumiço das revistas de papel, e, consequentemente, das bancas de jornal). 

Estou com as leituras da revista atrasadas. Para teres ideia, recém concluí a leitura da edição de janeiro de 2023 (edição 196). 

Mas esta edição, que li com atraso me chamou a atenção por algumas reportagens. Inclusive pensei em te emprestar ou doar a revista, mas não sei se terias tempo para lê-la. Por isso que comento algumas das reportagens aqui. 

A primeira reportagem se chama Minha bisavó matou um cara. Escrita por Sergio Schargel, fala do assassinato do ilustrador Roberto Rodrigues, irmão do escritor Nelson Rodrigues, por Sylvia Serafim, em 26 de dezembro de 1929. O fato aconteceu dentro da redação do jornal Crítica, que pertencia à família Rodrigues. Convém lembrar que nessa época Nelson Rodrigues ainda não era “o” escritor, jornalista e dramaturgo, mas um rapaz de 17 anos. O texto também informa que o autor da reportagem, Sergio Schargel, é bisneto de Sylvia Serafim. 

Schargel começa narrando o fato pela versão do próprio Nelson Rodrigues. O assassinato do irmão mais velho teria marcado em muito a psiquê do dramaturgo. Sylvia Serafim teria ido à redação do jornal para tentar evitar a publicação de uma reportagem que a retratava como adúltera. Na época ela estava em processo de separação do médico Ernesto Zeferino da Costa Thibau Júnior. Claro que em 1929 um processo de separação de um casal da alta sociedade carioca era um escândalo em si, mas o autor informa que não havia adultério, apenas incompatibilidade de gênios entre o casal. 

É possível que Sylvia quisesse falar com o diretor de redação do jornal, o patriarca Mario Rodrigues (nessa história vale lembrar que o nome oficial, ou menos conhecido, do Estádio Maracanã é Mario Filho, isto é, Mario Rodrigues Filho, outro irmão mais velho de Nelson Rodrigues), mas ele não estava. Ela encontrou Roberto, eles teriam ido conversar em uma sala reservada na redação, onde o tiro atingiu Roberto no abdômen. Ele faleceu após três dias de agonia. 

Pelas palavras de Schargel, Crítica era um jornal reacionário (na verdade o autor fala em conservador, eu que penso em reacionário). Tomou por escândalo um processo de separação (naqueles tempos só era possível aos casais se desquitarem), e, quando um membro da família proprietária do jornal foi morto por uma mulher que queria ser jornalista e escritora e era simpatizante do feminismo, começou a lançar diariamente textos para macular o nome de Serafim, com palavras de baixo calão, que me espantam hoje. Acho impressionante que tenham publicado tais palavras há quase um século. 

Fato é que por um bom tempo Sylvia Serafim foi retratada como a prostituta louca que assassinou um homem bom. Para esse retrato contribuiu a família Rodrigues com o seu jornal, e seu posterior mais ilustre membro, Nelson Rodrigues. Schargel faz um inventário de obras de arte que abordam esse crime, criadas ao longo do século XX. Inclusive cita o ensaio de uma peça que ele e seu pai viam, quando uma das atrizes da peça se aproximou e começou a descrever o enredo. Depois comentou: “Como pode, né? O que leva uma mulher dessas a tomar uma atitude tão monstruosa? Dizem que ela não era muito sã e por isso se suicidou depois.” Isso teria acontecido no final dos anos 1960. Sororidade zero, me parece. 

A longa reportagem termina informando que só mais recentemente a figura de Sylvia Serafim vem sendo estudada com menos imparcialidade. Já há alguns trabalhos acadêmicos analisando o fato e o ambiente dessa primeira metade do século XX. 

Bah! Falei um bocado de uma só reportagem. Mas realmente me impressionaram os palavrões com que Serafim foi tratada. 

Bom, falarei bem menos das outras duas reportagens. 

A primeira é uma espécie de ensaio da escritora argentina Betina González, que fala, bem, das dificuldades que ficam no caminho para uma mulher argentina se tornar escritora. Em especial para uma filha da classe trabalhadora. E imagino que isso possa valer para qualquer mulher que queira se tornar escritora, na Argentina, no Brasil, ou mesmo nos chamados países desenvolvidos. Eu confesso que desconhecia Betina González antes de ler esse texto. E González fala dessas dificuldades. Por exemplo, quando uma professora de inglês basicamente informa que é necessário ser rica para ser escritora, pois só essa condição lhe daria meios de ter histórias para contar. E depois teria que ser genial. E também como na Argentina em que ela se criou, a literatura era uma atividade para meninos. Meninos que se comparavam a James Joyce e Dostoiévski. Em todo caso, ela cita autoras argentinas: Silvina Ocampo; Maria Negroni; Beatriz Vignoli; Esther Cross; Fernanda García Lao. Acredito que gostarias de ler esse ensaio. 

Por fim, a revista se encerra com texto de Ariane Chemin, sobre a morte do cineasta Jean-Luc Godard. Mais detalhadamente o suicídio de Godard, aos 91 anos, na Suíça. O cineasta nos deixou em 13 de setembro de 2022. Para essa reportagem Chemin fala dos últimos dias de Godard, de sua esposa, Anne-Marie Miéville, dos amigos que o acompanhavam há anos, de suas ex-esposas, que foram atrizes em seus filmes, Anna Karina e Anne Wiazemsky. E, bem, nos deixa pensando por que um homem resolve se suicidar aos 91 anos. 

Pois então. Era sobre isso que eu queria falar. 

2023 vem terminando. Espero que continuemos bem em 2024. E depois também. 


09, 12/12/2023. 

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