Cara Maria – III
Cara Maria,
Novamente te escrevo. Talvez seja um pouco de acomodação, um pouco de preguiça mental isso de repetir mensagens a ti.
Nestes dias de final de inverno e proximidade de primavera temos vivido temperaturas amenas, e uma sucessão de dias ensolarados e chuvosos. Como comentei na mensagem anterior, dias de árvores floridas. E não se trata do hibisco que parece florir várias vezes por ano.
Escrevo à tardinha de domingo. Tem chovido o dia todo. Repetindo, vi árvores floridas. E, apesar da chuva, ouço o que me parece o cantar alegre dos passarinhos. Esta frase, o cantar alegre dos passarinhos, não é minha. Mas parece tão bonita que dá vontade de repetir. "O cantar alegre dos passarinhos". Sim, os passarinhos cantam e seu canto parece alegre, embora se formos inquiri-los, eles provavelmente não nos responderão se seu canto é alegre de fato.
Talvez o assunto que mais me pegou esta semana tenha sido o golpe de estado que depôs o governo recém reeleito no Gabão. Gabão! Gabão, África.
Nestas questões de geografia e história, podemos pensar no anedótico gringo inculto. O estadunidense autocentrado, que não sabe que a capital do Brasil não é Buenos Aires. Talvez ecoando quando Ronald Reagan esteve por aqui e agradeceu a acolhida do povo da Bolívia. Sabes como é, Bolívia, Brasil, tudo começa com B e é fácil a gente se enganar.
E se muitos cidadãos do extenso país da América do Norte não sabem a capital do Brasil, quantos de nós somos capazes de citar os países da Europa ou da Ásia com suas capitais? Bom, eu costumava ser bom em geografia no final do primeiro grau, atual ensino fundamental. Devia saber a maior parte das capitais europeias e asiáticas. Fiquei velho e esqueci muito do que havia decorado para provas daquela época. Depois, de quebra, aconteceu o colapso da União Soviética e da Iugoslávia. O que era Iugoslávia virou uns seis ou sete países, e sou incapaz de dizer exatamente quantos países surgiram da antiga União Soviética.
Quantos de nós conhecemos os países da África e suas capitais? Pelo que li são 54 países. Bem diferentes entre si. Os países ao norte do Deserto do Saara, dominados pelo islamismo, são bem diferentes dos países ao sul desse Deserto. Os países da costa oriental do continente sofreram mais influências árabes que os da costa ocidental. E no sul da África temos temperaturas que se parecem com as daqui do sul do Brasil. Se não me engano, Durban, na África do Sul, fica na mesma latitude de Porto Alegre.
O noticiário não ajuda. Alinha o golpe de estado no Gabão, com uma série de golpes de estado ocorridos no continente. Falam dos golpes do Mali, na Guiné, no Sudão, em Burkina Fasso e em Níger.
Muitas vezes disso decorre que pessoas formalmente educadas dizem uma platitude como "isso decorre de uma questão cultural". Uma questão cultural é a resposta que as pessoas dão para poderem dizer algo e não pensar muito no assunto. Como se a cultura desses sete países afligidos por golpes de estado fosse a mesma, o que não é.
Talvez uma resposta melhor, não muito melhor, é que cada país tem sua história, tem cidadãos, cada um com seus interesses, e tem elites que serão mais ou menos corruptas, que poderão ceder, ou não, mais ou menos do seu poder.
No próximo sábado será 11 de setembro. Para quem viveu os eventos de 22 anos atrás, eles ficarão para sempre na memória. A queda das torres do World Trade Center, o ataque ao Pentágono e o ataque fracassado à Casa Branca. No próximo sábado, 11 de setembro, se completarão 50 anos do golpe de estado que derrubou Salvador Allende, no Chile. Esse país com uma elite branca que se considerava (se considera?) europeia era o país mais estável da América do Sul até então. Dizer que o golpe no Chile aconteceu por uma questão cultural é algo que não se sustenta. Agora já sabemos que os Estados Unidos e a então ditadura brasileira conspiraram contra o governo Allende. E , bem, boa parte da elite e da alta classe média chilenas clamaram pelo golpe.
Poderia lembrar mais uma série de coisas. Do tipo que Portugal teve um golpe de estado que acabou com o Estado Novo salazarista em 1974. Ou que em pleno século XXI, autocracias eleitorais (achei muito bom esse conceito quando li em algum jornal, "autocracia eleitoral") estão estabelecidas na Polônia e na Hungria. Talvez uma autocracia eleitoral esteja se estabelecendo em Israel. E por pouco o Brasil não esteve a caminho de se tornar algo assim.
Sabes? O Gabão tem uma população menor que a da Grande Porto Alegre. O golpe apeou do poder uma família governava o país desde a sua independência na década de 1960. Talvez os militares gaboneses de 2023 façam como os portugueses de 1974. De qualquer maneira, será algo com que as elites e o povo gabonês terão que lidar. Espero que lidem bem.
Mudando de assunto, vi pelas redes sociais que estás, ou estiveste recentemente, na cidade do Rio de Janeiro. Tuas imagens me inspiram contentamento. O Rio de Janeiro continua lindo. Apesar do crime organizado, das milícias, do assassinato de Marielle, das mortes de crianças em tiroteios. Espero que tua estadia aí esteja sendo, ou tenha sido, boa e inspiradora.
"Alô, alô, Mariazinha, aquele abraço!"
A meteorologia prevê uma semana instável. Acho que o frio já não mais nos assustará.
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03, 05/09/2023.
Uma crônica mais do que excelente - florescente!
ResponderExcluirComentário generoso, mestre Rubem. :)
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