Cara doutora, eventualmente algum dia vai mal


Cara doutora,

Hoje o dia começou mal.

Pelo aplicativo de mensagens no celular enviei para minha ex-mulher uma mensagem que deveria ter enviado para meu filho. Se Freud estivesse vivo, ele explicaria se o que fiz foi um ato falho, ou uma simples distração que virou uma imbecilidade. Como resultado, recebi uma cascata de mensagens sobre um amor que morreu, mas que não devia ter morrido. Sobre um luto em vida que não se realizou (de fato, parece esse luto que não se realiza). 

Hoje seria dia de encontrar a namorada. 

Ela também não estava de bom humor. Ontem tivemos um desentendimento a respeito do que deveríamos fazer hoje, do tipo viajar a uma cidade mais ou menos próxima ou não. Não gosto de rompantes. Eu não queria viajar com base em decisão tomada na véspera da viagem. Ela queria. Houve uma discussão e apesar da tensão inerente, achei que havíamos chegado a algum consenso. Iríamos viajar, mesmo que eu não achasse uma boa opção. Contudo, hoje ela decidiu não viajar. Pensei que ela tivesse concordado com minha opinião de não fazer programações de última hora. Qual o quê. Decidiu não viajar porque não sentiu apoio em mim. Em compensação passou boa parte do tempo em que passamos juntos em atitude de preferir estar em qualquer outro lugar, exceto comigo. 

Para mim, foi daqueles dias em que a morte seria solução. 

Não que eu despreze a vida e pudesse tomar qualquer atitude para terminar com ela, a vida. Mas a gente sempre se lembra de gente que toma esse gesto extremo. Por exemplo, Getulio Vargas. 

E a gente sempre pensa em como a vida é frágil. 

Penso em minha irmã e o tal protocolo de alívio da dor de pacientes em câncer terminal. Isso nunca é admitido, já conversamos a respeito, mas nesse protocolo continua me parecendo que o paciente é eutanasiado, como parece que minha irmã o foi. Sei. Sei. Sou um leigo. Nada sei dessas coisas. Talvez ajudasse se a coisa fosse mais clara, mais divulgada, mais debatida. 

Sempre fico pensando em qual câncer virá me livrar das contradições da existência. Inclusive me lembro de uma das nossas sessões, em que pontuaste sobre o câncer. Câncer é um substantivo que engloba uma série de doenças diferentes, que tem em comum a mutação genética das células e sua multiplicação descontrolada, em variados tecidos e órgãos. Assim meu pai morreu de melanoma, aquele câncer de pele agressivo; minha mãe de câncer de mama, que ela se recusou a tratar; e minha irmã de câncer de pâncreas, contra o qual ela nunca recebeu tratamento, e, pouco antes de falecer em decorrência do protocolo de alívio da dor de pacientes em câncer terminal (lembrando dos parágrafos acima) perguntava sobre a quimioterapia que, esperava ela, lhe trouxesse a cura ou a sobrevida. 

Eu tenho isso, de ser dramático, ou fatalista, ou dramático e fatalista. 

O dia acabou comigo e meu filho em um pub, querendo celebrar o Dia de São Patrício, ou o Saint Patrick’s Day em bom português. São Patrício é o padroeiro da Irlanda. Seu dia é hoje, 17 de março. Contudo o pub havia celebrado o padroeiro da Irlanda na véspera. Afinal, melhor celebrar um santo que nos estimula a beber cerveja no sábado do que no domingo. Foi como se estivéssemos atrasados para a festa. Mas, de fato, os promotores da festa é que resolveram se adiantar. Pelo menos ainda tivemos a oportunidade de beber chope verde. E também comer pão verde (de corante). 

Enfim, não é que o dia foi assim mal, mal, mal. Foi apenas, assim, um pouco mal. 


18, 19/03/2024.

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