Bárbara Sanco partiu na Semana Santa


Sempre me achei muito cioso dos meus mortos. Quero dizer, sempre quis ficar perto deles quando eles se despedem. Meus mortos são meu pai (1990), minha mãe (1995) e minha irmã (2018). Eu ainda poderia acrescentar nessa lista minha avó materna (1973) e meu avô materno (1978 ou 1979, não tenho certeza). Mas as mortes de minha avó e de meu avô se apresentaram como encargos dos meus pais. Eu senti muito o falecimento de minha avó. 

Se há alguém que foi mãe com açúcar para mim foi ela, a dona Rosalina. Chorei muito a perda dela. Para piorar, fui apartado de velório e enterro, porque achavam que eu era muito criança para aquilo. Fiquei aos cuidados de uma vizinha. A vizinha era como uma tia, mas deviam ter me deixado mais tempo com minha avó. 

Do meu avô fiquei desapegado sentimentalmente. Eu estava no início da adolescência e da erupção dos hormônios. Meu avô entrou em estado de senilidade profunda pouco antes de falecer. Ele não mais reconhecia os familiares ao redor, e invocava o nome de pessoas que não conhecíamos, prováveis amigos e amigas de uma outra vida. 

Assim, a primeira grande perda de que tive que me encarregar foi a do meu pai. Embora a maior parte dos cuidados dele tenha ficado por conta de minha mãe, o sepultamento foi algo que me coube, com a ajuda de um vizinho. Eu estava junto com meu pai quando ele expirou. E quando ele expirou eu queria me abraçar a ele, como se o pudesse reter um pouco mais junto de mim. E chorar sobre ele, e abraçado a ele. Infelizmente um tio veio querer me consolar. Mesmo que eu não quisesse ser consolado. Enfim. Acabei tendo que cuidar de uma burocracia que parecia tão desimportante. 

Quando minha mãe faleceu eu não estava junto a ela. Ela estava internada por conta da doença que a acabou levando. Quem cuidou de tudo foi minha irmã. Acho que até hoje tenho coisas não resolvidas com minha mãe. Deve ser por isso que ela aparece tanto na terapia. 

Faz pouco mais de cinco anos, praticamente ontem, que minha irmã nos deixou. Houve o choque da doença, que levou a um rápido decaimento dela. Em menos de um ano minha irmã também me deixou. E eu também estava junto dela quando ela expirou. E pude chorar até secarem minhas lágrimas. Felizmente ninguém quis me consolar. Pude chorar no momento de sua partida, depois no necrotério, até ser retirado pelos legistas, depois no velório. Ainda choro ao relembrar. 

Ou será que choro pelos acontecimentos desses dias de 2023?

Conheci Bárbara Sanco em uma oficina literária dirigida pela Ana Mello, junto ao curso de formação de escritores Metamorfose. O primeiro episódio anedótico a respeito dela foi que enquanto esperava para pagar na fila da farmácia, ela teve tempo de escrever um conto. Depois ficamos sabendo de seu histórico de saúde frágil. E mais uma história anedótica. No caso, em uma internação, sob o efeito de analgésicos fortíssimos, foi capaz de escrever poesia. Ficamos juntos nessa oficina por cerca de três anos. A amizade acabou extrapolando para encontros em outros lugares. Como sessões de autógrafos, onde eu estive presente quando ela autografava e onde ela esteve presente quando eu autografava. Pessoa afável, gregária, me elegeu como um irmão de coração, como ela dizia. Simpática, risonha, era afetuosa sempre que nos encontrávamos. Fácil constatar agora que esse sempre sempre foi pouco. Nesse período ela conheceu o Marcius que veio a se tornar seu marido. Tive momentos formidáveis junto com eles. Infelizmente Bárbara não gostava de compartilhar os seus momentos de dores físicas, e eles eram muitos. Nesses momentos graves, preferia se recolher. Tenho a impressão que não queria ser incômoda. E agora eu sinto falta de ter partilhado esses momentos. Ter ajudado se tivesse sido possível. Não sei se estou sendo repetitivo, mas, por conta dessa saúde frágil, os encontros sempre foram menos, sempre insuficientes. Mesmo assim tivemos momentos e tivemos colaborações. Estivemos juntos na coletânea Palavras de Quinta, este com os demais integrantes da oficina com a Ana Mello; e na coletânea de poesias Ménage Atroz, junto com a Claudia. Há poucas semanas ela me entregou o prefácio que escreveu para o livro que pretendo publicar sobre os dias mais agudos da pandemia de covid-19. 

Na quarta-feira da Semana Santa, 5 de abril de 2023, Bárbara partiu. 

Naquele dia, pela manhã, eu estava em trabalho presencial (de um sistema híbrido), quando o Marcius me enviou uma mensagem a respeito do fatídico evento. Imediatamente fiquei chocado. Também anestesiado. E tudo pareceu não mais fazer muito sentido. Todas as tarefas que tive que realizar naquele dia, as fiz robotizado, automaticamente. O velório e o sepultamento estavam marcados para a tarde da própria quarta-feira. Na minha cabeça, a jato! Pedi dispensa do trabalho para ir ao velório. Quando lá cheguei, eu estava devastado. De meus olhos caíam lágrimas, como de uma torneira vazando. Agora eu tinha uma morta que não era minha, mas ela me fazia chorar sem conseguir me conter. Uma morta que era antes do marido, do paí, da mãe, dos filhos, dos irmãos. Resolvi fazer como certa tradição hebraica. Mesmo que eu quisesse me abraçar e chorar junto ao corpo de Bárbara, isso não me era possível. Fiquei longe. Nem quis olhar. Acabei por querer me lembrar de como ela era viva. E sei que sua memória dependerá mais e mais dos retratos dela. Fazer o quê? Abracei o Marcius apertado. Depois ele foi me apresentando à família de sangue dela. Como eu disse, eu era da família de coração. Mãe, irmãos, filhos, finalmente o pai. As lágrimas seguiam rolando rosto abaixo. Essa família estava contida. Talvez já tivessem chorado por toda a manhã a cota de lágrimas que lhes cabia. Não havia pregadores na despedida. A cerimônia que houve foi liderada pelo pai da Bárbara, meu xará, seu José. Textos em prosa e poesia escritos por ela foram lidos. Um amigo da família (um diácono?) puxou as orações finais. Bárbara se foi na Semana Santa. Na Semana Santa é relembrada a morte de Jesus, e celebrada sua ressurreição. Em determinado texto dos Evangelhos é dito que Jesus declarou “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá(…)”. Eis uma esperança. E foi isso. Por volta de quatro e meia da tarde, o féretro percorreu os caminhos do Cemitério São João. Bárbara foi sepultada em um jazigo da família. 

Já não poderei ouvir a sua voz, nem a sua risada. Já não poderei esperar por novos textos que escreva. Por novos livros que publique. Agora, a espeito dela, quase tudo é passado. 

Obrigado, Bárbara, por tudo que você é pra mim. 


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A foto da Bárbara foi copiada e adaptada do perfil de um aplicativo de mensagens

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08, 11/04/2023. 

Comentários

  1. Muito obrigado José...pelo carinho com minha única filha mulher. 🦋

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  2. Também optei por não ver... Guardar na lembrança o sorriso aberto o olhar de afeto. Nos deixa saudade e algumas lembranças, concordo com vc... Foram poucas....

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  3. Quanta emoção e verdade, meu querido cronista. Ela vive nos belos textos que nos deixou como lindos presentes da sua passagem pelas nossas vidas.

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  4. Comovente texto, uma grande perda sentida por mim também. Pessoas que se vão e sempre deixarão marcas no nosso coração. Para sempre, Bárbara Sanco.

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  5. Babi permanece na poesia e na intensidade do seu texto. Também na lembrança da força do seu abraço e da sua gargalhada, diante da qual nossas misérias cotidianas passavam para a categoria das insignificâncias. Vai fazer um ano que a perdemos. Que não a esqueçamos e que sua memória sempre nos emocione. Saudades de Bárbara.

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