Atualização Cadastral-Sentimental


Às vezes somos surpreendidos por sentimentos inesperados. E coisas que deveriam ser banais, acabam assumindo dimensões maiores. 

Hoje, por exemplo. Depois de meses de pesquisas, tentativas de tomada da atitude e adiamentos, e, depois de ter agendado via internet, compareci a um guichê da Justiça Eleitoral, para uma atualização de endereço. Levei o título de eleitor, a carteira de identidade e um comprovante de residência, no caso a conta de luz. 

Me assustei um pouco ao chegar ao local, pois parecia que havia muito mais gente do que seria possível atender, uma vez que há o agendamento prévio. Mas boa parte desse pessoal não havia agendado. A prioridade de atendimento seria dada aos que marcaram previamente. Os demais seriam atendidos na medida do possível. O esclarecimento me aliviou. 

De fato, em três minutos, fui chamado para ser atendido. Apresentei os documentos, fiz o registro de minha assinatura em um escâner. O funcionário atualizou dados, me fotografou, e registrou informaticamente minhas impressões digitais. Depois me entregou o novo título. Assinei o título e um recibo em papel. Feito. Acho que em menos de quinze minutos eu estava liberado. 

Saí do recinto, cheguei à Praça Dom Feliciano, e uma onda, um sentimento, me tomou. Não sei se de alívio, ou de tristeza. Talvez ambos. 

Eu havia atualizado meu registro eleitoral. Não voltaria mais às seções eleitorais do bairro Jardim Carvalho. 

Isso é um rompimento de mais de trinta anos. 

Eu me registrei para votar, em meados da década de 1980, nos estertores da ditadura. Tive até a esperança, vã, de que minha primeira eleição seria a primeira eleição para presidente do Brasil, depois de 25 anos (a eleição presidencial anterior havia sido em 1960, antes de eu nascer). Na época  a chamada "Emenda Dante de Oliveira", era um projeto de emenda constitucional que propunha eleições diretas para presidente em 1984. A emenda não passou no Congresso, e acabei votando pela primeira vez no ano seguinte, para prefeito. 

Meu primeiro título de eleitor era um documento grande, dobrável, datilografado, com foto 3 x 4. 

Pouco depois o título foi alterado, em um recadastramento, e recebi uma pequena cédula verde, sem foto. 

Desde a primeira eleição que participei eu votava no Jardim Carvalho. 

Era o natural. Eu morava na Vila Cefer 2, com meus pais e minha irmã. Em 1985, minha irmã se mudou para o Rio de Janeiro. Em 1986 casei e continuei morando, e votando, por ali. 

Depois me mudei para a zona norte da cidade, mas não alterei minha seção eleitoral. Dia de eleição era data marcada para visitar a família. 

Mas a família foi sumindo. 

1990 meu pai faleceu. Voltei a morar com minha mãe. 

Depois, em 1995, minha mãe faleceu, mas fazia algum tempo que minha irmã voltara. Em 1996, me mudei novamente. Minha irmã ficou. 

A partir de então, dias de eleição, eram dias para rever minha irmã. Nessas eleições da década de 2010, tivemos até oportunidade de brigar por posições políticas. 

Mas, em 2018, minha irmã também se foi. 

Não havia mais ninguém para eu visitar na Vila Cefer. Não havia mais porquê voltar. 

A velha casa para a qual eu nunca quis ir, quiçá voltar (a casa da infância querida tinha ficado em outro lugar, o lugar da primeira infância), já foi vendida.

A Vila Cefer já não é um lugar para mim. 

A vida segue. Por enquanto. 


12/02/2020.

Comentários

  1. Tenho agendado para o dia 27/02, mas tenho pensado que não quero deixar de votar no Protásio, afinal sempre foi ali que exerci aquilo que foi negado a tantos por tanto tempo. Ainda moro no mesmo bairro, também não tenho mais meus pais e irmão para brigar por causa do voto, mas os tempos atuais me fazem temer que, se mudar de zona eleitoral, talvez seja um mal presságio. Somos parceiros, entendo teus sentimentos.

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  2. Comendador (perdoe a intimidade do apelido), tua crônica tocou fundo.
    Somos da mesma geração, passamos pelos mesmos títulos (eleitorais) e sou solidário em sua melancolia.
    Porém, diferentemente, nunca mudei meu endereço cívico (Igreja do Mont'Serrat), e sugeri que a Vanessa também não o fizesse. Assim, cruzamos a cidade (ela na Vila Nova) por causa de minha alma nostálgica. Até mesário já fui!
    Considero o périplo uma espécie de procissão. E o resgate de tantas eleições.
    Linda crônica! Lindíssima!

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