Fruto de uma certa persistência do amor
Fruto
de uma certa persistência do amor
O que vai aqui é algo da memória, e a memória pode nos trair. Reminiscências do que talvez meus pais tenham me contado. Posso estar enganado, posso estar mentindo, mas não é por mal, é apenas a situação em que me encontro. Órfão, já não posso perguntar a eles sobre como aconteceu, ou algum detalhe omitido.
Eu sou o caçula de dois irmãos. Temporão. Então muita coisa me é desconhecida.
Minha família é da cidade de Rio Grande, no sul do estado. Meus pais devem ter se conhecido no final da Segunda Guerra. E acredito que Rio Grande tenha sofrido blecautes na época da guerra, haja vista ser o único porto marítimo do estado. Não conheço as circunstâncias em que eles se conheceram, mas sei que se casaram no final de 1946, minha mãe com 21, e meu pai às vésperas de completar 30.
Foi uma relação em que ela aspirava a uma vida social, e ele queria comodidade. Explique-se: ele já tinha gastado seu tempo de boemia, e queria conforto. Ela queria superar sua vida de moça de família, queria sair e passear. O que aconteceu foi que a situação foi certamente mais cômoda e vantajosa para papai. Mamãe logo teve que se resignar a cuidar de minha irmã, que nasceria um ano após. Depois de algum tempo minha irmã se tornaria o motivo dos passeios de minha mãe.
Minha irmã nasceu, após um longo e sofrido trabalho de parto. Naquele tempo as mulheres normalmente tinham o auxílio de parteiras, mesmo nas maternidades. Como o bebê não nascia naturalmente, ela teve que sofrer uma cesariana, num tempo em que esse procedimento era raro e agressivo. A cesariana foi feita com um corte vertical de cima a baixo na barriga de minha mãe, que disse que havia sido anestesiada com máscara de clorofórmio.
A família viveu assim por cerca de 19 anos em Rio Grande. Meu pai era pedreiro, uma ocupação precária, mas que, bem ou mal, foi suficiente para sustentar a família. Minha mãe se virava com a aplicação de injeções na vizinhança quando isso era necessário. Ela usava uma seringa de vidro, que era esterilizada a cada aplicação. Eram tempos quase sem saúde pública, com acesso bastante restrito a médicos e enfermeiros para as famílias pobres.
Na metade da década de 1960, num país que crescia, e em busca de melhores perspectivas para minha irmã que atingia idade para entrar no mercado de trabalho, minha mãe decidiu mudar para a capital. Informou meu pai das intenções dela, e indicou a ele que ela viria para Porto Alegre, quer ele viesse junto, ou não.
Papai não se fez de rogado, e resolveu vir na frente. Em seguida vieram também minha mãe e minha irmã.
De alguma forma, a vinda para a capital acabou mexendo com meus velhos. Pouco mais de um ano após a migração da família para Porto Alegre, e cerca de 19 anos após o nascimento de minha irmã, minha mãe me deu à luz.
Acredito assim que, de alguma forma, eu sou fruto de uma certa persistência do amor.
07/06/2016.
P.S. Esta crônica é parte da campanha de Rubem Penz, por mais amor na rede, próximo ao dia dos namorados.
A crônica original do Rubem: http://www.metrojornal.com.br/nacional/rubem-penz/escreva-com-a-hashtag-apersistenciadoamor-285469
#APersistênciaDoAmor
Bela história, José Alfredo! Que surpresa, imagino, foi a tua chegada na família!
ResponderExcluirAbraços, Rubem