Entrevista com Fernanda Mellvee - Amarga Neblina



Intrigado com o livro "Amarga Neblina" (Porto Alegre, Class, 2017), enviei as perguntas abaixo para a autora Fernanda Mellvee. Ela gentilmente respondeu. Confira.

1. Podes dizer algo sobre teu processo criativo? Fiquei especialmente curioso com o teu desejo de contar uma história ambientada na segunda década do século XX, em uma cidade da Serra Gaúcha.

        É claro que nem sempre tenho todo o tempo e concentração necessários para trabalhar sem interrupções, mas procuro sempre reservar um período no início da manhã ou no final da tarde para me dedicar à criação literária, acho importante manter a linearidade da escrita. Tenho visto muitos colegas que depois de algum tempo sem escrever, sentem dificuldade em retomar a atividade. Como qualquer forma de arte, a escrita envolve técnica e a prática é fundamental.
       Quanto à escolha da Serra Gaúcha como “cenário” para a minha história, foi uma escolha afetiva, mas também, funcional. A região dispõe de um elemento que é fundamental na narrativa, a neblina, que funciona como uma metáfora das relações nebulosas dos moradores de Santa Cruz da Neblina. A Serra Gaúcha ainda é um lugar onde a natureza se manifesta exuberante, mesmo nos perímetros urbanos. Recentemente, fiz uma viagem para a região e não pude deixar de me encantar mais uma vez com a névoa que insiste em aparecer mesmo nas tardes de verão.
       Uma das coisas que pesquiso (além de escritora, sou formada em Letras e estou concluindo o mestrado em literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul) é a função dos espaços físicos na literatura de autoria feminina, talvez esteja aí a origem do meu interesse em tornar a paisagem quase uma protagonista no meu romance.
      Quanto a situar o romance no início do século passado, isso se deve a minha preferência por histórias ambientadas em outras épocas. Jamais parei para analisar o motivo dessa minha atração por outros tempos, mas creio que seja por algum tipo de identificação, visto que os direitos das mulheres (uma conquista difícil, constantemente ameaçada) estão sempre relegados a um segundo plano. A onda crescente de conservadorismo que estamos vivendo no Brasil é uma prova disso. Por mais que as nossas lutas por igualdade estejam consolidadas, ainda existem muitas pessoas, inclusive mulheres, que acreditam que uma sociedade ideal é aquela em que o marido sai para trabalhar e a esposa fica em casa cuidando dos filhos, parafraseando uma certa ministra. 
      Tudo o que sempre me preocupou quanto à liberdade das mulheres, de certa forma tem sem mostrado concreto, principalmente após as últimas eleições. Ainda existe uma grande parcela da nossa sociedade que apoia a volta das mulheres para o espaço privado, e se não ficarmos muito atentas, a igualdade de direitos, que ainda não está consolidada, será uma fantasia muito distante.
       Talvez seja por isso que a dinâmica da sociedade brasileiro do final do século XIX e início do século XX pareça tão familiar para mim.


2. Santa Cruz da Neblina é calcada em alguma cidade específica? Eu pensei em São Francisco de Paula, com seu lago; uma vez que em Santa Cruz da Neblina há um lago, que, por sinal, é importante para a história. 

       Existe um pouco de várias cidades em Santa Cruz da Neblina, não me inspirei especificamente em uma ou em outra. Um amigo me perguntou, em certa ocasião, se eu havia me inspirado em sua cidade natal, localizada no Vale dos Vinhedos. Creio que mais do que as paisagens, a natureza das relações dos neblinenses seja o elemento que faz com que cada leitor identifique a sua cidade com a cidade criada por mim.


3. Gregory Heresstauss é um místico e curandeiro que exerce forte influência sobre Maria Alice, a esposa do prefeito da cidade, porque parece restaurar a saúde de Aninha, a filha. Grigori Rasputin (1869-1916), mais ou menos contemporâneo de Heresstauss (sim, estou misturando história e ficção aqui), era um místico e curandeiro que influenciava a Czarina Alexandra, porque amenizava as crises de saúde do Czarevich Alexei. Isto é uma espécie de "piscada de olho" (expressão do Umberto Eco) para o leitor que conhece história? Ou este leitor viajou?

       Gregory Heresstauss foi inspirado em Rasputin. Com certeza, citando Eco, podemos dizer que o personagem é uma piscada de olho para os leitores que conhecem a história dos últimos anos da Rússia dos czares. Obviamente, Amarga neblina não tem nenhum compromisso histórico com a Dinastia Romanov, mas o romance surgiu do meu interesse por este período tão fascinante da história. Então, após ter sido picada pela abelha da inspiração, pesquisei muito, realizei várias leituras sobre Rasputin e sua relação com a nobreza russa, mas tudo o que encontrei estava ligado à especulações sobre o suposto caso do mujique com a imperatriz Alexandra e o paradeiro do pênis, de mais de 30 centímetros, decepado na noite em que Rasputin foi assassinado. Então, com uma vasta matéria de rumores, cheguei à conclusão de que seria interessante recontar essa história, mas mostrar os fatos através de uma perspectiva feminina, com todos os problemas que implicava ser mulher no início do século passado.


4. Teu livro foi publicado no segundo semestre de 2018, se não me engano. E acabou pegando um tempo de denúncias sobre João de Deus, de Abadiânia (GO). Os dois seriam espécies de curandeiros. João de Deus pelo que se lê, seria um abusador. Heresstauss parece exercer um grande poder sedutor sobre as mulheres (não lembro de alguma mulher especificamente abusada por Heresstauss). Tens algo a dizer a respeito?

       É uma estranha coincidência, da qual só me dei conta um dia desses, mas que se restringe aos supostos poderes de cura. A chegada de Gregory Heresstauss mexe com a imaginação de toda uma cidade, pelo mistério de sua origem desconhecida e também pela aparência exótica, em meio aos rostos conhecidos dos moradores. Numa sociedade conservadora e marcada pelas convenções sociais, a presença de alguém que desafie a moral e os bons costumes não poderia jamais passar em branco.


5. Heresstauss também é envolvido em certa aura de mistério. Perto do final da história, o leitor fica sabendo de uma peculiaridade do relacionamento dele com algumas das mulheres. Mas fora essa peculiaridade a psicologia dele não é muito aprofundada, e ficamos no risco de um estereótipo. Isso foi de propósito? Um risco calculado?

       A falta de complexidade de Gregory é um risco calculado e assumido quando optei por dar ênfase à Aurora, a principal personagem feminina, que, aliás, uma primeira leitura pode considerar quase tão rasa quanto Gregory. No caso de Aurora, temos uma vastidão de medos e anseios, negados pela própria personagem, que ao longo da obra desafia o curandeiro e se propõe a desmascará-lo em pensamentos, mas que jamais se dirige a ele de forma direta.    Da mesma forma, Aurora jamais admite para si mesma que o deseja, e mesmo quando ela decide encontrá-lo, é sob o pretexto de uma suposta vingança.
       A auto-repressão da personagem é um reflexo da sociedade na qual ela está inserida, onde as relações entre os moradores não acontecem de forma clara e cada personagem esconde um segredo. Voltando ao personagem Gregory, a ausência de informações sobre a vida pregressa do personagem contribui, ao meu ver, para a aura de mistério que o envolve do início ao fim da narrativa.


6. O livro se passa entre 1918 e 1919, num quadro político em que recém havia terminado o conflito do Contestado (onde havia liderança religiosas liderando facções), a Europa passava pela pior guerra vista até então, e por aqui havia a ditadura do Partido Republicano Rio-Grandense, mas a política passa ao largo de Amarga Neblina. Aurora, na lua de mel, inclusive acha a vida na capital mais leve. Por que a política dos grandes eventos ficou fora do livro?

        O enredo é muito mais voltado para o interior da personagem do que para sua realidade exterior. Amarga neblina trata-se de um romance psicológico, onde todo o conflito é interno. O contexto histórico e político é deixado à margem do texto, porque a personagem, assim como os demais moradores de sua cidade estão tão envoltos na névoa das convenções sociais que tudo aquilo que se encontra além dos limites de Santa Cruz da Neblina, é desimportante para eles. A visão de mundo de Aurora é limitada pela realidade asfixiante de uma vida pré-determinada para ela. Aurora cumpre seu papel de esposa, sem se insurgir contra aquela sociedade que a oprime e ao longo da narrativa, travando uma batalha consigo, assim como ocorre a outras personagens femininas na obra.

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