Reflexões trazidas pela peça “Marxismo, Ideologia e Rock'n Roll”
Reflexões trazidas pela peça “Marxismo, Ideologia e Rock'n Roll”
A peça “Marxismo, Ideologia e Rock'n Roll” me suscitou algumas reflexões, as quais pretendo comentar a seguir.
Obviamente, para comentar a peça e as reflexões que ela me suscitou alguma coisa sobre a peça há de ser dita. Então, se você acha que pode perder parte do prazer de assistir à montagem por conta de algum detalhe previamente revelado aqui, é melhor que você não leia este texto.
Então vou começar pelo fim. Quando fiz meu breve comentário sobre a peça, eu falei das boas soluções técnicas e disse que o final deixava a desejar. Explico-me: o final da peça se torna uma história de amor que enfim se realiza. Pode ser um final com caráter redentor, mas me pareceu um tanto quanto escapista. É o típico final hollywoodiano e pequeno-burguês, do qual ouvi falar numa palestra e que qualquer frequentador mais ou menos regular de cinemas sabe, isto é, o final em que o mundo pode estar acabando ao seu redor, mas se você conseguir manter a você mesmo e seus amados (como namorada ou esposa e filhos) bem, tudo estará bem. O exemplo mais extremo disso foi o filme “2012”, de Roland Emmerich, onde é literalmente isso que acontece, o mundo está acabando, mas como você, sua esposa e seus filhos estão bem, tudo está bem. Na peça “Marxismo, Ideologia e Rock'n Roll”, as personagens Ian e Esme se separam na juventude, quando ele decide abandonar Cambridge e voltar para Praga, ocupada pelas tropas do Pacto de Varsóvia, que estão ali para sufocar a “Primavera de Praga”, um movimento reformista que pretendia humanizar o regime socialista da Tchecoslováquia. Ian, a princípio era alinhado ao regime, tanto que foi estudar na Inglaterra sob os auspícios do regime, mas volta para tentar de alguma maneira resistir, construir seus país. Por conta disso foi preso, interrogado, possivelmente torturado, quando libertado ficou sob vigilância, teve sua residência invadida e depredada, e depois teve que aceitar a ocupação de padeiro, muito abaixo de suas qualificações de estudante pós-graduado. Depois o chamado “socialismo real” vai se desgastando, e por fim acaba. Ian pode assumir um emprego compatível com a sua educação, e pode viajar ao exterior novamente. Pode retornar a Cambridge e retomar sua relação com Esme. Final Feliz. Feliz?
Em contraposição à repressão e às violações de direitos humanos em Praga, a peça mostra a tranquilidade, a democracia e as liberdades civis desfrutadas na Inglaterra, onde um professor universitário pode não apenas ser simpatizante dos regimes socialistas repressores da Europa Oriental, como mesmo colaborar de alguma forma com estes regimes.
Provavelmente é a origem de Tom Stoppard que gere uma abordagem assim. Pelo que é informado sobre ele, ele saiu da Tchecoslováquia ainda criança, quando seus pais fugiram da eminente invasão nazista ao país no final da década de 1930. Sua família foi para Hong Kong, então um domínio inglês. Seu pai morreu na Guerra, e sua mãe casou-se com um cidadão inglês. A Inglaterra tornou-se seu país natal, diante de uma Tchecoslováquia, que passou da ocupação nazista, para a ocupação soviética, e posteriormente para um regime socialista com liberdades civis restringidas. A Inglaterra manteve sua democracia e suas liberdades civis.
Mas se a Inglaterra foi lar e refúgio para Stoppard, em contraste com os regimes de força de sua Tchecoslováquia natal, ela não passou incólume pelo período. Por exemplo, em 1953 os serviços secretos ingleses, em colaboração com a CIA, foram co-responsáveis pelo golpe de estado que derrubou Mossadegh no Irã, e instalou a ditadura do Xá Reza Pahlevi que durou mais 20 anos. A Inglaterra sempre foi alinhada com os Estados Unidos, que ajudou a semear ditaduras pelo mundo, justamente agitando o fantasma do perigo comunista, das ditaduras socialistas, que ameaçavam o estilo de vida ocidental e cristão.
Se tomarmos como espelho o Brasil para o que chamei de arco temporal da peça, de 1968 a 1990, o que vemos refletido? No final de 1968 foi instituído pelo regime militar (que surgira de um golpe de estado apoiado pelos Estados Unidos quatro anos antes) o Ato Institucional Nº 5, que acabava com as poucas liberdades civis que os militares haviam mantido após o golpe. Em 1990, e apenas em 1990, o primeiro presidente civil eleito diretamente pelos cidadãos tomou posse no cargo. Nesse intervalo, tivemos um regime que permitia prisões arbitrárias, tortura e execuções extra-judiciais. Em parte tal tipo de regime se justificava por conta da ameaça do “comunismo internacional”.
Apesar de tudo, essa peça não pode ser incluída dentro da vasta indústria do anticomunismo, até porque foi escrita em 2006, depois portanto do final dos regimes do chamado “socialismo real existente”. Se hoje ainda há regimes que se dizem socialistas como é o caso de Cuba, Vietnã, China e Coreia do Norte, isso é muito menos importante do que o que existia até 1991, com a União Soviética, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Iugoslávia, Bulgária e Albânia, todos se dizendo socialistas.
Desde a Revolução de 1917, o socialismo se tornou um ideal mobilizador, uma utopia que estava destinada a triunfar em todo mundo, onde todos os homens seriam iguais, onde não haveria a “exploração do homem pelo homem” (para repetir uma frase muito citada). Tal ideal se tornou em uma espécie de religião secular, que conseguiu adeptos e simpatizantes pelo mundo todo. Mesmo que tenham acontecido os pelotões de fuzilamento, as restrições às liberdades civis, e os campos de trabalhos forçados. Por outro lado, o ideal socialista gerou uma reação contrária de igual ou maior magnitude. O que chamei de “indústria do anticomunismo” anteriormente. E que em nome de evitar o “perigo comunista” não se importou em espalhar ditaduras que também acabavam com liberdades civis, torturavam e matavam, e não se interessavam em amenizar a “exploração do homem pelo homem”. E, se em 1946, após ter sido fundamental para derrotar o nazi-fascismo, o socialismo soviético parecia prestes a dominar o mundo, com o exército soviético ocupando diversos países da Europa Oriental, e com os partidos comunistas da França e da Itália muito fortes, em 1968 ele já claudicava, apesar da aparência de pujança. E em 1991 ele basicamente deu seu último suspiro, quando o golpe de estado contra Gorbachev fracassou. Foi o fim da utopia comunista.
E talvez seja isso que nos traga para o rock, o “rock'n roll”. Voltando à nossa peça, no início, quando Ian decide retornar a Praga, a única coisa que ele faz questão de declarar que levará de volta é sua coleção de discos de rock. No início da peça, Esme imagina que Syd Barrett, fundador do Pink Floyd canta para ela. Em Praga, as forças da repressão fazem questão de roubar e destruir a coleção de discos de Ian. Na Tchecoslováquia, os músicos que tocam rock são considerados subversivos, perdem suas licenças de músicos, mas mesmo assim continuam compondo e se apresentando. Se tornam resistentes contra o regime. E no final da peça se dica sabendo que os Rolling Stones se apresentam em Praga em 1990. Seria o rock uma nova utopia? Um novo ideal? Difícil. Se no início o rock surgiu como elemento de demonstração de rebeldia juvenil, ele logo é cooptado. O capitalismo sempre se adapta.
Então, se nem o socialismo, nem o rock pode ser uma utopia a nos guiar, a único meio de alcançar a felicidade será através da pessoa amada? Talvez. Mas isso não é ou pode se tornar um reducionismo e uma espécie de escapismo?
12/06/2013.
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