Max e os Felinos e As Aventuras de Pi - um comentário conjunto
Max e os Felinos e As Aventuras de Pi - um comentário conjunto
Não sei se ainda há algo a ser dito sobre a questão das obras “Max e os Felinos”, do brasileiro Moacyr Scliar, e “As Aventuras de Pi”, do canadense Yann Martel.
Depois da pŕopria narrativa de Moacyr Scliar sobre o incidente, e da reportagem do The New York Times sobre o assunto, ainda pude ler um texto de Carla Ceres, onde ela comenta o livro de Martel e cita o incidente, além de demonstrar que, se houve plágio da ideia de Scliar, por parte de Martel, o autor canadense não plagiou apenas a Moacyr Scliar, mas também Edgar Allan Poe e Herman Melville. Ceres ainda fala na Bíblia e no Bhagavad Gita.
A Biblia: um navio cheio de animais cruzando o Atlântico, no caso de Scliar, ou um navio cheio de animais cruzando o Índico e o Pacífico no caso de Martel, sempre terão como base de referência a Arca de Noé. Ou Utnapshtim antes, na Epopeia de Gilgamesh. É complicada a questão do que é original ou plágio em obras de arte.
Atenção, este é um texto com comentários às obras citadas, que, eventualmente, podem diminuir seu prazer de ler as referidas obras.
Tanto na obra de Scliar, quanto na de Martel, um jovem náufrago se vê sozinho em um barco salva-vidas, junto com um grande felino. Um jaguar na obra do brasileiro, um tigre na obra do canadense. O brasileiro escreveu primeiro. O canadense depois. Este admite que copiou a imagem, embora negue ter lido o livro do brasileiro, tendo sabido da história através de uma resenha. Supostamente a resenha teria sido escrita pelo escritor estadunidense John Updike, para o The New York Times, ou para o New York Times Review of Books, mas ficou constatado que Updike não escreveu a respeito, nem foram encontradas resenhas em uma ou outra publicação. Sobre isso fica a dúvida: onde Yann Martel leu a respeito? Contra o canadense ainda paira uma aura de arrogância por uma suposta citação dizendo que “era uma boa ideia estragada por um escritor menor”. Em todo caso, Martel cita no início da obra uma certa “centelha da vida” devida a Scliar.
Em todo caso, “Max e os Felinos” e “As Aventuras de Pi” acabam por ser obras muito diferentes apesar do grande felino no barco em ambas.
“Max e os Felinos” é uma novela em três capítulos, em que o protagonista, Max Schmidt, crescendo, tem que enfrentar seus medos, e as ameaças ao seu redor. São três capítulos, e em cada capítulo “reina” por assim dizer um grande felino, um tigre, na sua infância e juventude na Alemanha, o jaguar no naufrágio em sua fuga do nazismo para o Brasil, e uma onça a rondar sua propriedade na serra gaúcha uma vez já estabelecido no Brasil.
O jaguar no escaler é uma figura interessante, mas me pareceu bastante acessório na obra de Scliar. Além disso, pode com muito mais facilidade ser descartado como um delírio de Max, uma vez que Max é resgatado em alto mar, na costa do Brasil por um navio, e a tripulação nega que houvesse algum jaguar a bordo, quando Max acorda.
Já “As Aventuras de Pi” é um romance razoavelmente longo, em que a personagem Pi, o tigre, chamado de Richard Parker, e o barco salva-vidas tem um papel fundamental. A vida de Pi em Pondcherry, na Índia, e sua vida no Canadá, são como prólogos e epílogos de uma obra que central mesmo é a sobrevivẽncia no mar em condições bastante adversas.
O menino Piscine Patel desenvolve uma religiosidade peculiar, em que acaba se tornando tanto hindu, quanto cristão, quanto muçulmano. Em determinado momento ele é confrontado pelos líderes das três religiões, que o viam como um bom crente, tanto hindu, quanto cristão, quanto muçulmano. Tudo isso porque ele frequentava os templos dessas religiões. É a fina ironia de Martel: para ser considerado um bom crente, basta frequentar as reuniões da religião que se segue.
Essa questão religiosa está colocada tanto no livro, quanto no filme “As Aventuras de Pi”. O filme é uma sequência grandiosa de imagens, que podem reforçar ideias religiosas, como foi o meu caso. No caso do filme, as desventuras no mar podem ser vistas como uma grande luta de um crente com o seu Deus, porque, afinal, a fé não está desprovida de dúvidas e vacilações, porque as dúvidas e vacilações fazem parte dos seres humanos que professam a fé.
Já o livro é mais irônico a respeito da fé. Como hindu, Pi Patel tinha como princípio ser vegetariano. Mas diante da adversidade em alto mar, ele acaba por renunciar a este princípio em nome da sobrevivência. Ou seja, melhor renunciar, mesmo que temporariamente, a nossos princípios religiosos para viver esta vida, que manter-se fiel à fé, e, consequentemente, partir para a outra vida com Deus, após a morte, parece ser a ironia de Martel. Pois com a escassez de mantimentos e o agravamento da fome, Pi Patel só pensa em como aliviar a fome, só vive para isso. Qualquer peixe, ou tartaruga, ou ave, que lhe caia as mãos logo se torna uma vítima para seu estômago, e para o do tigre que coabita com ele o bote.
E no caso de da obra de Martel. talvez o tigre não possa ser tão facilmente descartado quanto o jaguar na obra de Scliar. Mesmo que seja difícil acreditar que quatro animais, uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre, escapem de um naufrágio junto com um humano. E mesmo que o autor ofereça uma interpretação humana para os animais no barco salva-vidas: a zebra é um marinheiro filipino do navio, a hiena o cozinheiro do navio, o orangotango a mãe de Pi, e o tigre o próprio Pi. Mesmo com tudo isso, o rapaz e o tigre juntos no barco ainda parecem algo verossímil. Ou talvez seja outra ironia do autor com a fé e com Deus. No caso de serem uma hiena, uma zebra, um orangotango e um tigre parece melhor que o caso de seres humanos matando e devorando uns aos outros. Talvez acreditar em Deus torne melhor viver em um mundo violento como o que nós vivemos. Ou não. Mas na obra isso pode ficar em aberto, afinal é uma obra de ficção.
De qualquer maneira, de volta à civilização e à segurança e estabilidade que esta proporciona, Pi Patel pôde voltar a professar com fervor sua singular religiosidade, e constituir família no final da história. Ele que havia perdido o pai, a mãe e o irmão no naufrágio.
Ao final deste texto, vejo que falei muito mais de “As Aventuras de Pi” que de “Max e os Felinos”. Faz sentido. O livro de Scliar é bem menor que o de Martel. Menor em volume de páginas, que fique claro. Além disso a obra de Martel teve a adaptação para o cinema, coisa que também acabei por comentar, mesmo que levemente.
Foi então plágio o que Martel fez? Depende. Certamente, como Martel mesmo admitiu ele copiou essa imagem de um grande felino num barco com um homem sobrevivendo a naufrágio. Mas são obras tão diferentes que é difícil falar em plágio puro e simples. Martel copiou uma ideia, mas criou uma outra história.
Ambas as histórias são boas. Mas se eu tivesse que dar um veredito, eu diria que a de Martel é um pouco melhor.
02/11/2013.
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