A morte do velho erudito


O velho erudito morreu hoje. Recebi a notícia por emeio. 

Nem era tão velho. Estava com menos de sessenta anos, o que é mais de uma década em relação à idade média da população masculina brasileira. 

No último encontro que tivemos, o velho erudito celebrava a aposentadoria. Entre tantas questões econômicas, ele lembrava que a imprensa corporativa vivia sempre pregando a postergação dessas aposentadorias. O velho erudito dizia que havia começado a trabalhar sendo ainda menor de idade. Por conta disso, poderia se aposentar antes dos cinquenta anos, mas, por causa das tantas reformas previdenciárias havidas nos últimos trinta anos, foi obrigado a aguardar até quase os sessenta. Reclamava que se fosse em um país civilizado, as tais reformas previdenciárias deveriam valer para quem estivesse iniciando no mercado de trabalho, não para ele que já trabalhava há quinze anos quando a primeira reforma jogou a aposentadoria dele para uns cinco anos após o previsto. Não tinha certeza sobre qual país seria um país civilizado. Talvez, quanto a essa questão previdenciária, a Suiça, ou a Áustria. Certo mesmo era sua convicção de que vivia em um país de merda, com uma burguesia de merda e uma classe média de merda. Sempre fazia a ressalva que não dava para generalizar, mas como sofria as consequências das decisões tomadas pela classe política do país, e sabia que essa classe política acabava eleita principalmente por conta dos movimentos da burguesia e das classes médias, acabava generalizando. 

O velho erudito sempre falava da melhoria de sua qualidade de vida pela via do serviço público. Ele achava que essa era a realidade do país. Quem não fosse herdeiro burguês, ou herdeiro remediado de certa classe média que conseguiu acumular pecúlios, só conseguiria ascender economicamente via serviço público, ou no trabalho em empresas de economia mista (aqui vale uma explicação: empresas de economia mista, são, em geral, estatais. Mas como são empresas de economia mista, a maioria dessas estatais têm parcela de seu capital controlado por entes privados, muitos negociados em bolsa de valores. A maioria dos bancos chamados de estatais, com a nobre exceção da Caixa Federal, são empresas de economia mista. Na percepção dele, poucas empresas chamadas de estatais são totalmente controladas por governos. Ele não gostava dessas tecnicalidades econômicas mas vivia citando-as e explicando-as). 

Assim foi a sua vida, aliás, como a de muitos colegas. Trabalhou trinta e cinco anos em uma repartição. Fez faculdade durante o serviço público, pensando que, além de aprimorar-se para o trabalho, poderia se dedicar a algum magistério após a aposentadoria. Acumulou um tanto de literatura especializada e material didático, durante a graduação e durante uma ou outra especialização que fez. Sonhava que essa literatura acumulada lhe serviria de apoio, na sua segunda vida. Tanto para dar aulas, quanto para ser um erudito ainda mais erudito, pois, afinal, o conhecimento não tem fim. 

Como a vida não é simples, quando se aposentou não conseguiu cumprir com o objetivo de se dedicar ao magistério. 

Como acumulara muito material de estudo, se viu às voltas com um imóvel entulhado de livros, apostilas, revistas, CDs, DVDs. 

Um fim de tarde me chamou e me pediu para acompanhá-lo a um pronto atendimento médico. Carregar livros para lá e para cá enquanto selecionava o que ainda precisaria ou o que podia ser descartado, deixara-o com dores no ciático. 

Recuperou-se daquela vez. Voltou para casa e o processo de seleção de materiais continuou. 

Morreu de infarto em um dos tantos dias que continuava dedicando a esse trabalho. 


29, 30/01/2024.

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