Otários de Sorte



Um otário com sorte é uma crônica-conto (ou um conto-crônica) de José Falero, publicada em seu livro Vila Sapo. É a última história da versão do livro que tenho, publicada em 2019, pela Editora Figura de Linguagem. 

É a história narrada em primeira pessoa de um protagonista (que pode ser o autor ou não) que sai de sua casa na Lomba do Pinheiro, com o objetivo de visitar sua irmã, que mora no bairro Floresta. São bairros distantes um do outro aqui na cidade de Porto Alegre. 

Não sei se Falero leu Ulisses, de James Joyce, ou a Odisseia, de Homero. Eu não li nenhum dos dois, mas sei algo deles a partir da leituras de resenhas e comentários. Inclusive tenho esperança de viver o bastante para ler ambos. O fato é que a narrativa de Homero abarca um período de anos; a de Joyce um dia; a de Falero uma hora. 

O protagonista da história de Falero pega um ônibus no Pinheiro, reflete sobre o transporte coletivo na cidade, desce na Redenção, próximo ao Instituto de Educação Flores da Cunha, e dali caminha, pela Osvaldo Aranha, e depois por alguma tranversal da Osvaldo Aranha, talvez a Barros Cassal, talvez a Santo Antônio (poderia ser também a Garibaldi mas esta tem a pior lomba entre a Osvaldo e a Independência). Por fim, ele encontra sua irmã em frente ao Shopping Total (que está em um conjunto de prédios onde antes funcionava uma fábrica de cerveja). 

Ao encontrar sua irmã, nosso protagonista reflete um pouco sobre a existência, sobre a sua sorte, sobre o destino de miseráveis que ele encontra pelo caminho. Ele acredita que testemunhou mais coisas que não são boas do que coisas boas. E faz um elogio à ignorância. 

Mas não sei se o elogio à ignorância não é ironia. O título da história é Um otário com sorte. 

Pensei nisso esta semana. 

Em um desses dias, eu tinha um encontro marcado com amigos na Cidade Baixa. 

Como moro na Vila Ipiranga, zona norte da cidade, peguei uma lotação perto de casa. As lotações são um transporte seletivo no meio do transporte coletivo de Porto Alegre. São micro-ônibus que deveriam oferecer mais conforto que os ônibus comuns, e não transportar passageiros em pé. Contudo nos últimos tempos dois fatores desencadearam uma crise no transporte coletivo da cidade em geral, e nas lotações em particular. O advento do transporte por aplicativos e a covid-19. A covid-19, evento temporário, mas longo, fez com que por um período grande, muita gente não se deslocasse para o local de trabalho, trabalhando a partir de seus lares. O transporte por aplicativo permite que uma pessoa tenha transporte particular por um preço semelhante ou pouca coisa mais cara, pelo mesmo preço da tarifa da lotação, dependendo da distância a ser percorrida. Assim, muitas linhas de lotação foram extintas. E alguns dos micro-ônibus que continuam circulando estão bastante degradados, velhos e com bancos estragados. 

Mas como eu ia dizendo, peguei uma lotação perto de casa. Desembarquei próximo da Igreja da Conceição, na Avenida Independência, e segui caminhando em direção ao sul pela Sarmento Leite. É uma área permeada pela vida estudantil universitária. De norte a sul, primeiro passei pela frente da UFCSPA, a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, com seus cursos de Medicina, Psicologia, Enfermagem e outros (me parece que quando passo por ali, sempre vejo muito mais meninas que meninos diante do prédio principal, o que pode reforçar o estereótipo da mulher como cuidadora. Mas claro que isso é só um estereótipo). 

E não me entendam mal, cheguei em uma idade que qualquer pessoa com menos de trinta anos é um menino ou uma menina. 

A quadra seguinte é toda da UFRGS, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De um lado os prédios ligados às Faculdades de Engenharia, do outro, o prédio da Faculdade de Arquitetura, a Rádio da Universidade, e mais adiante o antigo e imponente prédio da Medicina. Quer dizer, o prédio que era da Medicina. Se não me engano hoje é usado pela Faculdade de Biologia. Nesse quarteirão ainda estão a Reitoria e a Faculdade de Educação. No final da primeira década deste século eu tive aulas no prédio da Educação. Fui um aluno tardio, entrando para a Faculdade de História, tendo mais de trinta anos. 

Ao caminhar por ali, obviamente vejo muitos jovens para lá e para cá, atravessando a Sarmento Leite em um sentido e outro. Ver jovens se esforçando para cursar o ensino superior, em geral me é um sinal de esperança. 

Me chamou a atenção uma moça vestindo um moletom com estampa da Engenharia Mecânica. Espero que ela realmente esteja cursando. Já que falei em estereótipo, uma menina estudando engenharia mecânica ainda é uma quebra de estereótipo. Ainda durante meus anos de graduação tive um professor que havia se formado em engenharia. Ele contou a história de que, nos anos 1970, quando as primeiras mulheres passaram no vestibular para engenharia, ainda não havia banheiros femininos nos prédios da Faculdade. 

Felizmente os tempos e as mentalidades mudam. 

O prédio da antiga medicina é o que encerra a caminhada pela Sarmento. É um prédio majestoso. Belo. Que felizmente a especulação imobiliária da cidade não derrubou.

Passando sob o Viaduto Imperatriz Leopoldina, chego à Primeira Perimetral, ou Avenida Loureiro da Silva. Vejo árvores floridas. Parece que elas, as árvores, já se sentem como se estivessem na primavera, apesar de ainda faltar cerca de um mês até a nova estação. 

A caminho dos sessenta, próximo da aposentadoria, me dirigindo para conversar e beber, me divertir enfim, com amigos posso me considerar um sujeito de sorte, me dirigindo à meta final sem ter passado por grandes percalços na vida. 

Mas é preciso continuar atento. 

A vida é frágil e o horror espreita. 

Neste país tão violento, na noite do dia 17 passado, foi assassinada Bernardete Pacífico. Ela era uma líder de comunidades quilombolas no interior da Bahia. Tinha 72 anos. 

Neste país lideranças de lutas populares, como a luta pela terra, são assassinadas com frequência. Esses assassinatos não deveriam acontecer. 


20, 22/08/2023.

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