Carta Aberta: Uma visão dos livros de Élio Gaspari sobre a ditadura militar (1964-1985)

Carta Aberta: Uma visão dos livros de Élio Gaspari sobre a ditadura militar (1964-1985)


Cara professora,

Como a senhora sabe, ou talvez presuma, estou lendo a série de livros do jornalista Élio Gaspari, sobre o nosso recente ciclo militar. Já li A Ditadura Envergonhada(1) e A Ditadura Escancarada(2). No momento estou lendo A Ditadura Derrotada(3). Ainda estou no início.

Élio Gaspari não se utiliza de nenhuma metodologia que academicamente chamássemos de histórica, e, na verdade, ele mesmo se isenta disso. Ainda no início de A Ditadura Envergonhada, ele explica que não pretende nem mesmo escrever uma “história da revolução de 1964”(1-GASPARI, p.20), mas as histórias de Ernesto Geisel, que ele chama de “o sacerdote”, e Golbery do Couto e Silva, que ele chama de “o feiticeiro”. Para isso, ele escreveu dois volumes a título de “preâmbulo”. E estes dois livros, para mim, se tornaram obras de referência obrigatória, pela sua narrativa dos eventos entre 1964 e 1974. Os livros são uma alentada crônica desde o golpe de 1964 (o “Movimento”, ou a “Revolução, ou ainda a “Redentora”) até mais ou menos o final do governo Médici. Com especial destaque para a guerrilha, e a tortura nos quartéis.
Eu ouvi alguém falar que a narração de Gaspari é tão rica que chega a contar as pausas que a tropa enviada para combater o batalhão do general Mourão Filho fez para respirar. Claro que isso é uma brincadeira, e de maneira nenhuma o livro chega a tamanho detalhismo. Assim, volto a afirmar que o conjunto destes livros é fundamental para o estudo do período, podendo se constituir em obras para consulta, qual manuais de história que vez por outra somos obrigados a consultar para saber “o que aconteceu na história”.

Dito isto, posso dizer que a proposta do autor, Gaspari, sobre a tortura é que ela se constituiu numa política oficiosa do regime. Assim, se no texto do Martins Filho (4) , o general Geisel informa que a tortura “pode ter existido”, e esta também parece a posição do coronel Jarbas Passarinho, Gaspari informa sobre a tortura nos primeiros dias da ditadura, ainda no governo Castelo Branco. Ali, talvez a tortura pudesse ser vista como um “espasmo de violência”, num momento de sedimentar o golpe, e extravasar radicalismos, rescaldos da tal “primeira operação limpeza”. Ele cita as reportagens do então jornalista Márcio Moreira Alves sobre a tortura, e a viagem de Geisel pelo Nordeste para verificar as condições dos presos políticos (A Ditadura Envergonhada, pág. 147 e seguintes). Segundo o livro, de fato, as torturas aparentemente pararam, mas o governo não puniu qualquer responsável pelo acontecido. Foi como se sinalizasse algo como “eu sei o que vocês fizeram, agora basta; se isto voltar a acontecer haverá punições”.

A situação muda de figura a partir do governo Costa e Silva, com a radicalização do movimento estudantil, o início da luta armada, e do Ato Institucional nº 5. Um marco é a “aula” sobre tortura ministrada pelo então tenente Aílton Joaquim, para uma platéia de cerca de 100 pessoas, na 1ª Companhia do Batalhão de Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, com direito a projeção de slides sobre as “técnicas”, e exposição e uso de presos políticos como cobaias (2 - GASPARI, pág. 359 e seguintes). O livro A Ditadura Envergonhada termina com uma frase triste: “O exército brasileiro tinha aprendido a torturar” (pág. 362).

O livro A Ditadura Escancarada é iniciado com a seguinte frase: “ Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade.” (pág.14).

A seguir, na página 21, cita uma parte de uma apostila chamada “Interrogatório”, editada pelo Centro de Informações do Exército, o CIE. “ Será necessário, freqüentemente, recorrer a métodos de interrogatório, que, legalmente, constituem violência”. “[...] Se o prisioneiro tiver de ser apresentado a um tribunal para julgamento, tem de ser tratado de forma a não apresentar evidências de ter sofrido coação em suas confissões.”

Em seguida, na página seguinte, o autor fala na Medalha do Pacificador, oferecida como recompensa a muitos torturadores. Esta condecoração era oferecida pelo Exército como reconhecimento de atos de bravura, ou serviços relevantes prestados, a militares e civis. O capitão Aílton, citado acima, recebeu a condecoração. O delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturador reconhecido, e de triste memória, também.

E mais, na mesma página 22: “Quando ela (a 'tigrada', qualificativo dado pelo ex-ministro Delfim Netto, significando o grupo de policiais e militares que enfrentou a luta armada, e para prevalecer sobre ela usou a tortura e o assassinato. O termo é vastamente utilizado por Élio Gaspari em seus livros) mostra que pode fazer algo que o governo nega e condena, não se pode mais saber por onde passa a linha que separa o que lhe é permitido daquilo que lhe é proibido. O porão ganha o privilégio de uma legitimidade excepcional. A mentira oficial é o reverso da covardia da tortura. Através dela os hierarcas sinalizam um medo de assumir a responsabilidade por atos que apóiam e recompensam.”

A partir da página 162, de maneira ilustrativa, ele passa a contar o caso do jovem Chael Charles Schreier. Jovem, estudante de medicina, abandonou o curso, e entrou para a luta armada, militando na VAR-Palmares. Em 1969, após confronto com policiais do DOPS, Chael foi preso com alguns companheiros, e entregues à Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Moído pela tortura, Chael morreu, e foi encaminhado ao Hospital Central do Exército. Os oficiais-médicos do Hospital não aceitaram receber o cadáver como “vivo”, e o diretor do Hospital mandou que fosse feita a autópsia do morto. A certidão de óbito declarou 53 marcas de pancada, hemorragia na cabeça, e sangue em todos os espaços do abdômen. Intestino rompido. Tórax deprimido, com dez costelas quebradas. Em dezembro a revista Veja publicou que “o presidente não admite torturas”. O ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, declarou que se atos de tortura chegassem ao conhecimento do ministério, os responsáveis seriam punidos. Na semana seguinte, a revista publicou o atestado de óbito de Chael. Segundo Gaspari, o então tenente-coronel Luiz Helvécio da Silveira Leite, enviou carta ao ministro da Justiça. O ministro mudou o seu discurso, adaptando-o à linha dura. E ninguém foi punido por um caso de morte sob tortura registrado por oficiais-médicos do Exército.

Num capítulo intitulado “A Gangrena”, a partir da página 359, o autor conta o caso do Capitão Aílton Guimarães Jorge, o mesmo que atualmente é um dos líderes da contravenção no Rio de Janeiro, e patrono de escola de samba. Em 1971 ele era capitão no 2º batalhão da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Na Polícia do Exército, combatera a subversão, e foi ferido em um tiroteio, o que lhe valeu a Medalha do Pacificador. Contudo, resolveu se tornar protetor de contrabandistas. A Polícia Federal e o SNI investigaram e juntaram evidências do envolvimento do capitão com as ilegalidades. Assim, o coronel Aloysio Alves Borges, foi incumbido pelo comandante do I Exército, general Sylvio Frota, de resolver a situação. O coronel prendeu oficiais e sub-oficiais envolvidos com o contrabando, e obteve uma série de confissões, arrancadas sob coação (isto é, sob tortura). A Justiça Militar recusou o processo porque os réus afirmaram em juízo terem assinado suas confissões sob coação. Gaspari resumiu assim, o final do caso:

Para que o coronel Aloysio Alves Borges construísse toda a trama denunciada em seu IPM tirando de sua cabeça cada história e cada detalhe, seria necessário que tivesse raro talento de ficcionista. O que ele informou era verdade, mas reconstituíra os delitos através de um processo que violentara os direitos dos acusados e ofendera o rito da Justiça. A idéia de que a confissão é suficiente como prova e de que obtê-la pela violência anula o esforço da investigação, era estranha a ele, ao réus, ao DOI e ao regime. Agia-se com uma noção exclusiva de poder outorgando-se não só o direito de punir delinqüentes da forma que parecesse adequada, como também a prerrogativa de fechar os olhos quando se julgasse conveniente. [...]. O STM achou justo desconsiderar as confissões obtidas no DOI, mas esqueceu-se de determinar a investigação das torturas. O capuz da Justiça Militar estava torto: cego para a esquerda, enxergava à direita. Milhares de pessoas passaram pelos DOIs, mas a quadrilha de contrabandistas da PE foi o único grupo confesso na instrução policial integralmente absolvido em todas as instâncias.

Por fim, gostaria de terminar com mais uma citação. Esta do início do volume chamado A Ditadura Derrotada. Neste caso, Gaspari cita Georges Pinot, jurista francês, que estivera no Brasil na década de 1970, a pedido do Secretariado Internacional dos Juristas Católicos, investigando denúncias de tortura. As palavras dele: “A tortura, no Brasil, não é nem pode ser o resultado de excessos individuais; nem é, nem pode ser considerada, uma reação exagerada a atos terroristas para derrubar um regime em dificuldade que, por seu lado, provoca o famoso 'ciclo da violência'. Isso não sucede, porque já não existe luta armada no Brasil. A tortura é manifestação e necessidade de modelo político num contexto jurídico e socioeconômico”. Me parece que a citação resume até onde pude ler o próprio pensamento do autor, Gaspari, a respeito do assunto.

NOTAS:

1. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

2. GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

3. GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

4. MARTINS FILHO, João. A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares.
Varia História, Belo Horizonte, n.28, p. 178-201, 2003.


Reprodução de um texto que publiquei há cinco anos em meu blog Ainda a Mosca Azul. Eu havia enviado o texto para uma professora, cujo nome não citei publicamente.

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