Cartão de Infidelidade

Cartão de Infidelidade

Naquela quarta-feira, como muitas vezes fazia, Arnold foi à farmácia. Precisava de alguns remédios, para ele e para sua esposa. Chegou junto ao balcão, e logo foi atendido. Ao citar o nome das medicações, a atendente informou que parte daqueles remédios faziam parte do programa “Farmácia Popular”, do governo. Se ele tivesse a receita, alguns deles seriam gratuitos.

“Pois é. Mas infelizmente eu perdi a receita.” - Informou Arnold à atendente. E sentiu-se chateado de ter que pagar por algo que poderia ter lhe saído de graça.
Escolhidas as medicações, Arnold se dirigiu ao caixa para pagar. Entregou à operadora o cartão de identificação do seguro-saúde, para um desconto; o cartão de crédito, para o pagamento; e o cartão de fidelidade da farmácia...

A operadora de caixa digitou a identificação do plano de saúde, e passou o cartão de fidelidade. O cartão de fidelidade estava vencido. Que fazer?

“O senhor liga para o telefone que está no verso do cartão para pedir novo cartão. Depois o senhor volta à loja para que os pontos desta compra lhe sejam creditados.”

“Muito bem.” - Pensou Arnold.

A operadora passou o cartão de crédito e entregou a papeleta da compra para que Arnold assinasse. Ele assinou e foi embora.

Tão logo se encontrou com um telefone, ligou para o número do verso de seu cartão de fidelidade vencido. A voz robótica lhe demandou que digitasse o número do cartão nas teclas do telefone. Arnold fez isso. “Número inválido! Digite o número de seu cartão!”. Arnold tentou novamente, caprichando para ter certeza que tocava as teclas certas. “Número inválido! Ligue novamente!”. Arnold repetiu a lide, e aconteceu a mesma coisa.

Por fim, resolveu ligar para o suporte ao cliente da rede de farmácias. A atendente lhe sugeriu ligar novamente para o número do cartão e usar a opção de análise de crédito, em lugar de atendimento ao cliente por número do cartão. Uma voz humana o atendeu, mas não adiantou. O número do cartão realmente não existia para aquela administradora.

Arnold voltou a ligar para o suporte ao cliente da rede de farmácias. Arnold relatou novamente o seu caso. “Mas o seu cartão é também de crédito, ou apenas para juntar pontos?” - Perguntou a atendente. “Eu acho que é só para juntar pontos.”. Arnold de fato não estava seguro, mas nunca havia usado o tal cartão de fidelidade da farmácia como cartão de crédito. “Então o senhor volte à farmácia, que a loja deve emitir um novo cartão para o senhor. Mas serão debitados do senhor 150 pontos pela emissão do novo cartão.” Arnold ficou chateado. Por que cargas d'água um cartão de fidelidade tinha data de vencimento? E por que era preciso perder pontos para emitir um novo?

No dia seguinte, Arnold voltou à farmácia. Quando foi atendido, contou a atendente sua desventura com o cartão de fidelidade da rede. Arnold entregou o cartão vencido à atendente. Ela perguntou “O seu cartão é só de pontos? Ele parece é igual ao cartão de crédito da farmácia”. Arnold informou que ele só usava o cartão para juntar pontos. “Certo. Então vamos emitir um novo.” E se dirigiram a um terminal de computador para que fosse feita a emissão.

Cartão novo emitido, Arnold lembrou à atendente que a operadora de caixa lhe dissera que as compras do dia anterior poderiam ser incluídas no cartão até sete dias depois. A atendente tentou acrescentar as compras. O sistema recusou. O sistema não permitia que compras com data anterior à da emissão do cartão fossem inseridas como pontos. “Ué? Mas e o que a caixa havia dito?” - Reclamou Arnold. “O senhor desculpe. Acho que houve uma falha de comunicação.” - Respondeu a atendente, visivelmente constrangida.

Resignado, Arnold pegou o cartão novo, colocou em sua carteira e foi embora. Pensou se não deveria ter feito um escândalo, levantado a voz, quebrado o cartão na frente da atendente, e atirado os pedaços no chão da loja (ou pior, na cara da atendente). Não, pensou consigo mesmo. Não era do seu feitio, não valia a pena.

Saiu da farmácia, e pensou nos diversos filmes que já vira, em que as pessoas esbarravam em sistemas impessoais. Pensou em “Amor sem Escalas”, onde o personagem vivido por George Clooney dava sentido à sua vida solitária, com o cartão de milhagem de uma companhia aérea, e com o cartão de fidelidade de uma empresa de aluguel de automóveis. Pensou ainda da distopia de Terry Gilliam, chamada “Brazil”, onde a entrada de um inseto na máquina que emitia mandatos de prisão faz com que esta grafe de maneira incorreta o nome do suspeito, e por conta desse erro, um inocente seja preso e torturado.

Pensou também que o tal cartão de fidelidade fazia com que o cliente fosse fiel à loja, mas ele acabara de constatar que a loja não precisava ser fiel ao cliente. Assim vale a pena ser fiel.

Arnold ia com estas elucubrações, já distante da tal farmácia que gerara todo este relato, quando afinal confabulou com seus botões, “Mas para quê mesmo serve este cartão?”





31/03/2011.

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