A estranha situação de estar enviando uma mensagem ao meu pai morto sobre um velho relógio às vésperas do Carnaval de 2024


Pai,

Fiquei pensando em ti esta semana. Uma reflexão da semana passada relembrou que neste dia 4 de fevereiro se completaram 34 anos da tua morte. Uma morte que senti muito, muito. 

Estou escrevendo numa quarta-feira. No sábado será Carnaval. Possivelmente eu publique esse texto na Terça-Feira Gorda. 

Não herdei muita coisa. Um pijama. Um roupão. Um par de sapatos. Tem um colega de trabalho que ficou com esse item de herança fixado na cabeça dele. Ele achou surpreendente que eu pudesse herdar um par de sapatos do meu pai. 

Um relógio. 

Esta semana usei este relógio. Aquele mesmo relógio comprado provavelmente em 1965. Teria sido na antiga Casa Masson? Um relógio que, para ti, era tão caro à época, que precisaste do apoio do salário de minha irmã para, como se dizia, abrir um crediário, e poder comprar esse relógio em não sei quantas vezes. Um dos relógios que sempre davas corda antes de deitar para dormir (o outro era o despertador que, às vésperas de conseguires te aposentar, chamavas de “tirano”). Marca Technos. 

Pai, é impressionante como o preço dos relógios caiu. Hoje a maioria dos relógios do mundo deve ser fabricada na China. E é possível comprá-los direto de revendedores na China a preços que poderíamos chamar de ridículos. Enquanto escrevo, estou utilizando um modelo que custou cerca de trinta reais (cerca de seis dólares, ou pouco mais de dois por cento do atual salário mínimo brasileiro). E com a tecnologia do quartzo, esse reloginho de trinta pila deve ser mais exato que aquele relógio mecânico que te custou uma pequena fortuna em termos pessoais na década de 1960. 

Quando te foste, em 1990, a internet, essa ampla rede internacional de computadores não estava disponível para a maior parte da humanidade. Era uma rede para militares e acadêmicos. Mas logo depois, essa rede de computadores foi se tornando mais e mais presente e ao alcance de muita gente. É por meio dessa rede que hoje em dia se pode comprar um relógio da China por trinta reais. 

São objetos curiosos, os relógios. Apesar de haver esses aparelhos super acessíveis, continuam existindo relógios caros, e relógios de luxo (relógios que custam o mesmo que um automóvel ou um apartamento humilde). Ao mesmo tempo, muita gente já não usa relógio no pulso. Verifica as horas e os minutos no celular. Sim, celular é outra coisa que não usaste, um telefone sem fio que hoje faz muitas coisas. De fato, para a maioria das pessoas o celular é um computador de bolso, que também marca as horas. Ah sim. Os celulares geraram os “smart watches”, “relógios espertos”, que são como um outro computador, de pulso. Às vezes, uma extensão do celular. 

Os velhos relógios, analógicos com ponteiros, ou digitais (esses eu acho que conheceste), se tornaram acessórios de vestimenta para algumas pessoas, assim como anéis ou pulseiras. Eu também ajo um pouco assim. Acumulei ao longo dos anos uma pequena coleção de relógios. 

O relógio que me deixaste como herança, faz parte desta coleção. Ele é o elemento mais especial desta coleção. 

Essa semana recebi o relógio de volta de um relojoeiro. Eu o havia mandado para uma revisão. 

Foi por isso que o usei. 

Pai, lá se foram 34 anos, mas a saudade continua. Muita saudade. 


.



.

03, 06, 12/02/2024.

Comentários

  1. Meus pais morreram sem conhecer Internet. Meu pai não conheceu nem videocassete (que já existia quando ele faleceu, mas não tínhamos), nem CD, muito menos DVD. E um irmão meu que era um geniozinho da computação desde os velhos tempos do cartão faleceu sem conhecer a Internet. Isso foi muito injusto.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Poemas de Abbas Kiarostami na Piauí de Junho/2018

Sessão de Autógrafos - A Voz dos Novos Tempos

Feliz aniversário, Avelina!